Papo de Corrida

Grupos de SP e RJ correm juntos pelo novo Ibirapuera

O barulho de dezenas de pés tocando o chão de forma ritmada é familiar à maioria dos corredores. Mas, no fim da tarde de 20 de agosto, misturava-se a gritos de guerra, batidas de música black e a uma forte chuva no Ibirapuera. Eram as crews de corrida celebrando as obras de revitalização do parque promovidas em parceria pela Nike e a prefeitura de São Paulo.

As crews se espalharam pelas grandes cidades do país reproduzindo um movimento que começou no exterior. Em cidades como Londres e Nova York, grupos começaram a se reunir para usar o esporte como ferramenta de confraternização e ocupação de alguns espaços urbanos, deixando de lado aspectos mais técnicos do treino, como periodização de treinamento, suplementação nutricional e pace.

No total, oito desses grupos de São Paulo e Rio de Janeiro saíram de quatro lugares diferentes da cidade rumo ao Parque Ibirapuera para celebrar as obras de revitalização no fim de agosto. Levaram ao lado dezenas de entusiastas, apesar da chuva que deixou a maior metrópole do país em estado de atenção para alagamentos.

Correram festejando a integração entre grupos separados por quase 600 km de rodovia, mas, que costumam manter contato constante por meio de mensagens e redes sociais. Depois ainda celebraram as diferenças e similaridades entre si dançando sob a marquise as batidas do DJ Nuts.

 

 

Liberdade urbana

Uma das primeiras crews brasileiras foi a Ghetto, do Rio de Janeiro. O grupo traz consigo uma forte mensagem social desde sua criação até a forma de correr. A ideia, nascida em 2013, era juntar mulheres da zona norte do Rio de Janeiro para usar a corrida como forma de reivindicação social. Mostrar que aquele grupo da periferia tinha direito a ocupar a cidade. Deu tão certo que cresceu a ponto de mudar a proposta inicial.

“Como toda subcultura, você não é convidado a participar. Você vai por interesse, associação. É isso que faz com que ela seja forte e respeitada. A corrida não é um fim. É um meio de transformação. E, para termos mais histórias de transformação, passamos a manifestar essa contracultura com mais pessoas e mais gêneros”, explica o fundador e capitão da Ghetto, Júnior Negão.

As crews geralmente rejeitam locais e horários de treino usuais para corredores que focam performance. Para a Ghetto, isso pode significar o começo das atividades perto do início da madrugada no Engenho de Dentro. Com isso, vêm algumas particularidades, como a inclusão de saltos e mudanças de direção repentinas para desviar de buracos, sacos de lixos e outros obstáculos.

Em São Paulo, o grupo carioca correu dividindo o espaço e a animação com os locais da Damn Gang, que têm uma outra abordagem para o esporte. Criada no início deste ano, a crew usa a corrida como forma de confraternização e de exploração em uma metrópole mundialmente conhecida por privilegiar o uso do carro e pela falta de segurança.

Para aumentar a interação entre as pessoas, os corres semanais muitas vezes começam e acabam em bares ou lanchonetes. Mas a diversidade de pessoas nas atividades, de ultramaratonistas a iniciantes, também estimula a conversa, que muitas vezes ocorre em meio às atividades de quinta-feira à noite.

“Corremos juntos e enfrentamos todos os obstáculos que a cidade coloca na nossa frente. Com o passar dos corres, conseguimos cada vez mais mudar a perspectiva de como enxergamos e interagimos com São Paulo. Descobrimos espaços e lugares que jamais teríamos corrido se não fosse a Damn”, explica Luciana David, uma das seis idealizadoras do grupo.

O Parque Ibirapuera, que foi ponto de encontro das crews em agosto, é o local de treinamento da Vício Lifestyle. O grupo começou com três publicitários que apostaram na prática de esporte como forma de aliviar a carga emocional dos atribulados dias de trabalho nas agências. Alguns posts no Instagram depois, começaram a ganhar companhia de amigos. E de amigos de amigos para corridas e exercícios funcionais, duas vezes por semana.

“Treinamos à noite. Então, o lance é passar que existe vida, sim, após o trabalho. Não podemos ficar nessa de casa e escritório. Tentamos quebrar um padrão e isso engajou muita gente, quem tinha preguiça do ambiente de academia, gente que não se adequava a padrões estéticos”, diz Felipe Petroni, um dos ‘viciados’ originais. Com a expansão, a Vício agora também faz corres em túneis de São Paulo.

Esporte como expressão

Apesar das diferenças entre si, as crews têm como similaridade a intenção de levar a corrida a pessoas e grupos que não se identificam com o estereótipo do corredor. Por isso, os trajetos geralmente são curtos para incentivar quem ainda não tem o hábito de treinar a participar dos corres, e pace é uma palavra praticamente proibida.

“Eu sou negro e pobre. Estou acostumado que a estatística venha contra. Então queria criar uma contracultura. E não se faz isso sem uma crítica da cultura”, aponta Júnior Negão. “Têm pessoas na crew que disputam provas, mas esse universo é segregador. Parece que precisa ter um biotipo para ser considerado corredor e isso é uma coisa equivocada”, completa.

Na paulista Closeyros, por exemplo, algumas atividades, geralmente aos domingos no Minhocão, são de 3 km. O grupo foi criado pela relações públicas e influenciadora digital Magá Moura para levar o esporte que ela já praticava a alguns de seus quase 170 mil seguidores no Instagram. Nas redes sociais, ela fala, principalmente, sobre moda e estilo de vida.

O nome do grupo vem da gíria “dar um close”, que pode ser traduzida como atrair os olhares, mandar bem. “A gente se reúne para se divertir, dar risada. Às vezes vai fantasiado”, diz Magá, que já correu com uma tiara de unicórnio com as cores do arco-íris. “As pessoas têm vergonha ou acham que nunca vão conseguir correr, acham que é preciso ser atleta. Mas você pode correr maquiado, de brinco, de batom. Na moda”, diverte-se a baiana.

O trajeto relativamente curto também faz parte da essência da Pura Vida, uma crew carioca criada por quem está acostumado a correr distâncias muito maiores. A ideia do grupo nasceu do ultramaratonista Pedro Pires e do coach Thi Ferreira para promover integração e desenvolvimento físico e mental. O fim dos corres, que não costumam ultrapassar os 4 km, é marcado por técnicas de respiração ou meditação.

“É para que as pessoas possam retornar para casa melhores do que saíram”, esclarece o ultramaratonista. “O que nos motiva a continuar é ver pessoas que iniciaram na corrida pela nossa crew e hoje completam maratonas, além de famílias que se aproximaram novamente por meio dos corres”.

As ruas do Rio de Janeiro são ainda a área de atuação da Cria Crew. Ex-atleta de remo, Tarsis Gonçalves buscava um jeito de treinar durante as férias e começou a correr ao lado de outros amigos esportistas para se manter ativo no período sem competições. O grupo foi ganhando corpo e começou a chamar a atenção mesmo de quem não era atleta. Atualmente, reúne-se todas as terças-feiras.

“Chamamos de corre de bicho, porque tem que vir quem é bicho solto. Não pode ter medo de suar e vir para a rua. A corrida para mim é instinto. Se você precisa correr, vai correr. Seja para pegar um ônibus, voar para a faculdade quando está atrasado ou chegar antes em um compromisso. Nosso corpo pede isso”, afirma o carioca.

Mesmo com as diferenças e particularidades das crews, o grito de guerra da Ghetto, entoado com força antes dos corres e durante eles, resume o espírito que permeia todas elas: “Onde corremos? Na rua! Como corremos? Juntos!”.

Redação

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