Papo de Corrida

Psiu, deixa elas correrem em paz!

Toda mulher já passou por uma situação constrangedora de ser provocada na rua por um homem. E acredite, o assédio na corrida também é um problema para as atletas que treinam na rua. Muitas até deixam de correr ao ar livre para não terem que ouvir comentários tenebrosos . E, não, o problema não está no short de corrida ou no top. Está na mentalidade de quem continua perpetuando ideias e tratamentos depreciativos às mulheres.

Assédio na corrida virou parte da rotina

O assédio na corrida é tão, mas tão comum, que muitas das mulheres com quem a O2 conversou afirmaram que até já se acostumaram com as abordagens invasivas. “Acho que por estar de shorts ou calça legging, sei lá, passei por muitas situações de assédio. De assovios a gritos de ‘gostosa’. Normalmente é quem está dentro do carro que faz isso. Falam coisas tão pesadas que dá até vergonha de repetir”, conta Carla Caroline, corredora de São Paulo.

Fora o drama de pensar na roupa “certa” para treinar e planejar o percurso para evitar esse tipo de constrangimento (e até coisa pior). É preciso ter jogo de cintura para evitar o assédio: atravessar a rua, mudar a rota, sair acompanhada e escolher um horário que não seja nem muito cedo nem muito tarde… Muitas desistem desse trabalhão e vão correr na esteira; outras se inscrevem em uma assessoria esportiva ou encontram um grupo de corrida. Sozinhas, nunca. Vai que.

Você aí, leitor, pode até dizer, “ah, mas é elogio”, “se não gostar é só ignorar, fingir que não ouviu”. Entretanto, não é, não. Não é nada agradável ouvir palavras de cunho sexual de alguém que você nunca viu na vida. É constrangedor e, sim, ignoramos tanto a ponto de nos sentirmos culpadas às vezes.

“Ah, eu esqueci que ia pegar o metrô e estava de shortinho de corrida”, “Poxa, eu que vacilei em correr de top na rua” estão entre outras desculpas que damos para justificar a falta de vergonha alheia. “Não tem nenhuma vez que eu esteja correndo e não receba pelo menos uma buzinada, um farol alto, um ‘elogio’. Algo curioso é que não me lembro de ter sido assediada por outros corredores”, conta Mariane Takahashi, que corre desde 2016.

O mais triste disso tudo não são apenas as histórias, mas não ter uma solução para o problema, a não ser o bom senso. “É cultural”, como dizem por aí. Ei, psiu, você. Deixe elas correrem em paz.

 

“Tinha medo de ir treinar antes de amanhecer” – Tatiane Cris

 

Ô, lá em casa!

Vallery Mello, 36 anos, SP 

Toda mulher passa por isso. Infelizmente. Normalmente. Na rua, no trabalho, em qualquer lugar. Vi um vídeo que dizia que a cada dez mulheres, nove assumem ter passado por isso e uma tem vergonha de falar. Às vezes, é uma gracinha que você nem considera um assédio. Em 2013, em um treino de rua, saí para correr em São Bernardo do Campo (SP) e em determinado ponto um carro passou por mim, diminuiu a velocidade e deu a volta. Percebi o movimento e tive muito medo; sabe aquele frio na espinha? Na hora, vi duas mulheres paradas na esquina, esperando por alguém. Parei e pedi para ficar com elas ali. O carro deu a volta e foi embora. Não aconteceu nada, mas podia ter acontecido. Eu tive uma sensação muito ruim. Enfim, são muitos “vai que” antes de sairmos para correr. Como podemos aceitar isso?

D., 27 anos, SP

Estava a caminho da USP. Moro longe e resolvi começar a ir de metrô e trem. No primeiro sábado indo de transporte público deu tudo certo. Vesti regata e shorts e pus uma calça mais larga por cima de tudo (tirei só na hora do treino). Confesso que já fui com a calça por medo de possíveis assédios. No segundo sábado, saí atrasada e esqueci totalmente da calça por cima. Estava de short estilo ciclista, um pouco acima do joelho, regata e uma jaqueta corta-vento. Já no metrô, recebi encaradas pelo caminho inteiro. Cheguei a tirar a jaqueta para jogar por cima das minhas pernas.

Mas o pior foi quando fiz a transferência do metrô para o trem. Três homens (não eram garotos) vieram perto de mim enquanto eu aguardava o trem e começaram a falar um monte de besteiras do tipo “Não quer treinar lá em casa?”, entre outras. Fechei a cara e saí de perto deles. Eles riram, continuaram falando e se aproximaram de mim. Fiquei com tanto medo que não embarquei no trem, nem peguei os dois seguintes. Não queria correr o risco de descerem na mesma estação que eu. Destaco a roupa que eu estava usando, porque algumas pessoas justificam o assédio por esse motivo. Inclusive, quando contei para um colega de trabalho, ele disse: “Não sei se é o seu caso, mas vejo a mulherada correndo de shortinho, aí não tem como a galera não mexer, né?”. Se esse tipo de afirmação vem até de amigos, fica difícil. Vou ter mesmo que correr toda coberta?

Carla Caroline, 30 anos, SP

Uma vez estava perto da estação Vila Prudente (zona leste de São Paulo) correndo e passei em frente a uma obra. Um cara que trabalhava lá começou a mexer comigo. Dessa vez, sei lá por que, resolvi revidar. E ele começou a me xingar bem alto — disse que se não quisesse elogio, que saísse com outra roupa. Que eu era feia e que estava me fazendo um favor por mexer comigo, entre outros absurdos. E dá medo, como não? Tem dias que eu prefiro correr à noite, mas agora não vou mais. Até as 18h eu vou. Não quero passar por esse tipo de constrangimento novamente.

Tatiane Cris, 26 anos, SP

“Na época em que precisava fazer uns treinos longos para maratona, quando temos que correr por 3 horas ou mais, tinha medo de ir treinar antes de amanhecer, então meu treinador teve que ir comigo. Sempre tem que fazer aquela listinha mental: Onde vou? Como vou? Com que roupa eu vou? Quem vai estar por lá? Acho que homens não precisam fazer isso quando decidem sair para correr.

Pauline Gras, 30 anos, SP

Estava correndo na orla de Santos sozinha e passei por uns caras sentados nos bancos. Gritos, fiu-fiu e frases constrangedoras como: “Continue correndo assim que os peitos vão balançando”. Como é possível se concentrar e manter o ritmo da corrida depois de ouvir esse tipo de coisa? Em outra oportunidade, no Rio de Janeiro, eu e uma amiga tivemos que acelerar o pace e entrar em uma loja depois de dois caras começarem a nos perseguir e falar um monte de besteiras. Além, óbvio, das eternas olhadas nos peitos quando corria de top. Já nem me lembro da última vez que corri sem camiseta.

Priscila Arcanjo, 30 anos, SP 

Comigo aconteceu dentro do Parque Ibirapuera, em um sábado bem cedinho, correndo sozinha. Um homem passou e começou a me acompanhar de bicicleta, falando um monte de coisas que queria fazer comigo. Fiquei com muito medo e meio sem saber o que fazer, mas continuei correndo e vi dois guardas perto do banheiro. Parei para contar a eles o que aconteceu. Depois disso, o homem foi embora, mas dei um tempo e saí correndo do Ibira no primeiro portão que vi.

Debora Freire, 27 anos, SP 

Corro por hobby e por prazer. Mas na rua é horrível correr junto com os carros, porque fechou o semáforo, já era. Você vai ficar ali parada e começar a ouvir os absurdos. Tem uns trechos perto da Radial Leste (zona leste de São Paulo), onde corro, que evito porque são trechos meio abandonados e tal. Vai que. Temos que ficar pensando no trajeto, evitar passar por viadutos. Mas, independentemente do que a gente veste, a gente ouve. Em escalas diferentes, de acordo com a roupa. De shortinhos e legging o assédio é muito maior. Quase unânime. Infelizmente ser mulher é viver essas situações e ter que se acostumar a elas. Não corro à noite se meu amigo não corre comigo. Nem tão cedo, porque é vazio e pode acontecer alguma coisa. Sozinhas nos tornamos alvos mais fáceis.

 

 

 

“Um homem passou e começou a me acompanhar de bicicleta” – Priscila Arcanjo

Quem nunca?

Em uma pesquisa realizada pela campanha Chega de Fiu Fiu em 2013, das 7.762 mulheres ouvidas, 81% afirmaram que já deixaram de fazer alguma coisa por medo de assédio. De acordo com uma pesquisa do Instituto YouGo, 86% das brasileiras já sofreram assédio em público, sendo 77% assovios, 74% olhares insistentes, 57% comentários de cunho sexual e 39% xingamentos. Metade dessas mulheres afirmou que já foram seguidas na rua; 44% já tiveram seus corpos tocados; 37% relataram que homens se exibiram para elas e 8% foram estupradas em locais públicos.

Quando questionadas sobre qual situação gerava mais medo, 70% das entrevistadas afirmaram que era ao andar pelas ruas, onde se sentiam mais vulneráveis. Ou seja: quase todas as mulheres do nosso país já foram assediadas. E nós, corredoras, fazemos parte dessas estatísticas.

Outros números do assédio

  • 1 em cada 3 brasileiros culpa a mulher em casos de estupro
  • No Brasil, uma mulher é estuprada a cada 11 minutos
  • Apenas 10% das agressões contra mulheres são registradas
  • 42% dos homens concordam com a frase “mulheres que se dão respeito não são estupradas”
  • 32% das mulheres concordam com a frase acima
  • 85% das mulheres têm medo de serem vítimas de agressão sexual

Nos EUA

Segundo o National Street Harassment Report, o assédio baseado em gênero afeta 65% das mulheres e 25% dos homens. Uma pesquisa da Inglaterra com 2 mil mulheres mostrou que mais da metade delas já enfrentou algum tipo de assédio sexual enquanto corriam sozinhas. A pesquisa foi encomendada pelo England Athletics e mostrou que 60% se sentem ansiosas ou preocupadas quando vão sair para correr sozinhas. Muitas deixam de praticar atividade física ao ar livre para evitar o assédio. A pesquisa foi publicada pelo RunTogether, um programa nacional criado para encorajar pessoas a começarem a correr.

Dicas de segurança

Pedimos aos treinadores Rodrigo Lobo e Nelson Evencio, ambos de assessorias esportivas de São Paulo, para darem dicas para as corredoras se manterem seguras e evitarem o assédio na corrida.

Nelson Evencio: Sempre falo para nunca correr sozinha em local escuro ou deserto. Quando minhas alunas têm longão que começa muito cedo, chego no mesmo horário e faço pelo menos o começo do treino com elas. Para quem volta de transporte público, é bom colocar uma camiseta, calça ou bermuda mais comprida. Evite ir embora usando só short e top. Parece uma dica absurda, mas infelizmente muita gente que não é da tribo da corrida não está acostumada a ver pessoas mais à vontade.

Rodrigo Lobo: O mais importante é buscar locais com circulação de pessoas. É triste dizer isso, mas é cultural e muito natural em todos os lugares esses assédios contra as mulheres. O melhor é ignorar, até porque reagir pode piorar a situação. Se algo acontecer, peça ajuda. Não dá para falar sobre roupas porque acredito que todo mundo deve se vestir do jeito que bem entender e isso não deveria justificar o assédio.

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