Papo de Corrida

No ritmo das vitórias de Ederson Vilela Pereira

Quando haviam sido percorridas umas cinco voltas da prova dos 10.000 metros do troféu Brasil de Atletismo, no Estádio do Centro Nacional de Desenvolvimento do Atletismo, em Bragança Paulista, finalmente o DJ acertou. Depois de arriscar alguns sons latinos, mais malemolentes e dançantes, o baixo de John Deacon, do Queen, instaurou a cadência de “Another one Bites the Dust”, mais adequada para marcar o ritmo dos melhores fundistas brasileiros.

Na ponta, com expressão algo preocupada, Ederson Vilela Pereira constrói sua vitória num ritmo forte, arriscando-se, pois estava cansado. Quatro dias antes, ele havia concluído a Meia Maratona de Buenos Aires na 14ª posição, em 1h04min29s, resultado algo decepcionante para quem havia registrado 1h03min47s no ano anterior e pretendia estabelecer sua melhor marca pessoal. Em 2018, Ederson havia ficado em sexto lugar, o primeiro depois dos africanos, que disputam uma espécie de categoria paralela.

No final, em Bragança, deu tudo certo: ele venceu com o tempo de 29min35s62, mais de 11 segundos de vantagem sobre o segundo colocado, Jonathas de Oliveira, que divide seu tempo entre os treinos, pela manhã, e seu ofício de coletor de lixo. Correr atrás do caminhão de coleta e treinar para provas de atletismo não é tão raro no Brasil — Solonei Rocha da Silva também chegou a conjugar as duas atividades. O campeão do Pan de 2011 na maratona disputou os 10 mil metros do Troféu Brasil, mas abandonou a prova.

Em conversa com seu treinador, Cláudio Castilho, do Pinheiros, Ederson explicou por que estava tenso. “Fiquei com medo de quebrar. Se eu perdesse aqui, ia ficar feio, né?”, comentou o campeão, ciente das responsabilidades que carrega o medalhista de ouro dos Jogos Pan-Americanos de Lima. Para se ter uma ideia da dimensão do feito, cabe lembrar que apenas dois brasileiros, em 16 edições do Pan, conquistaram ouro na prova masculina antes de Ederson: Valdenor dos Santos, em Havana 1991, e Elenílson Silva, em Winnipeg 1999.

A conquista foi celebrada em grande estilo, em Caçapava, a cidade do vencedor. Na verdade, não tão grande assim. “Minha cidade é tão pequena, mas tão pequena, que só tem um carro de bombeiros. O comandante achou melhor que eu não desfilasse nele, porque poderia fazer falta caso se, por azar, houvesse algum incêndio bem na hora da festa”, diz o herói local. A solução foi colocá-lo numa viatura da companhia municipal de trânsito. “Mas era uma viatura bonita, branca. E pude ficar mais perto do povo. Foi um cortejo bonito. Desci do coreto da Praça da Bandeira e segui pelas principais ruas da cidade, com a sirene ligada. Fiquei orgulhoso.”

A vitória na pista da Videna, em Lima, foi arrancada com enormes dificuldades. Ederson já havia lutado pelo ouro na prova dos 5.000 metros. Ele liderava ao fim dos 4.000 metros iniciais, mas perdeu o fôlego, terminando na sétima colocação. É por isso que, três dias depois, quando viram o esforçado corredor bigodudo novamente na frente, muitos torcedores julgaram que ele havia novamente escolhido a tática errada, assumindo a liderança cedo demais, e que não teria resistência para manter a posição. Estavam errados.

Com 28min32s69, Ederson tinha apenas o sexto melhor tempo da temporada entre os corredores inscritos. Entre os mais rápidos, estavam o norte-americano Reid Buchanan (27min58s67) e Lawi Lalang (28min03s34), que nasceu no Quênia, mas corre pelos Estados Unidos, depois da naturalização. “Quem mais me preocupava era o queniano. Um cara que tem 3min33s nos 1.500 metros e 13min cravados nos 5.000 metros. Só venci porque forcei muito no último quilômetro, que fiz em 2min34s. Foi na raça. Deixei na pista tudo o que tinha e também o que não tinha”, admite Ederson, que concluiu a prova em 28min27s47, menos de um segundo à frente de Buchanan (28min28s41) e de Lalang (28min31s75).

Na verdade, segundo o treinador de Ederson, Cláudio Castilho, o corredor tem condições de melhorar consideravelmente seu recorde pessoal nos 10.000 metros, que passou a ser o resultado de Lima. “O recorde pessoal do Ederson nos 5.000 metros (13min23s24) é muito melhor, proporcionalmente, do que o melhor tempo dele nos 10.000 metros. Ele nunca fez de fato uma preparação para os 10.000 metros. O que fizemos, na verdade, foi aproveitar a velocidade que ele já tinha. Consideramos que ele tinha um pequeno histórico de lesão, e que seria capaz de aguentar um volume maior de treino. E isso acabou dando certo. Mas acho que o Ederson tem potencial para correr em 28min cravados. A prova do Pan foi tática.”

Castilho, treinador de atletismo e gerente de esportes do Esporte Clube Pinheiros, é responsável pela preparação de Ederson há dois anos. “Ele tinha uma lesão séria, que o impedia de treinar. Eu o ajudei no tratamento e iniciamos o treinamento propriamente dito. É difícil fazer um cara desses render muito mais do que já rendeu. A marca pessoal dele nos 5.000 metros, por exemplo, é apenas 4 segundos mais alta do que o recorde sul-americano do Marílson (Gomes dos Santos, 13min19s43). Ederson virou notícia de verdade, pela primeira vez, ao derrotar justamente Marilson, duas vezes campeão da Maratona de Nova York, na disputa dos 5.000 metros do Troféu Brasil de 2013. “Em 2009, no meu primeiro ano de adulto, eu só tomava porrada. Quando enfrentava o Marílson, minha meta era não tomar volta dele.”

A vitória de 2013, no Estádio Ícaro de Castro Mello, emociona Ederson até hoje. Foi obtida depois de um período difícil. Após três anos em Campinas, treinando na Orcampi, sob a batuta de ricardo D’Ângelo – ex-treinador de Vanderlei Cordeiro de Lima e de Solonei -, Ederson voltara a competir por São José dos Campos, cidade próxima a Caçapava e que dava um apoio razoável ao atletismo. “Quando voltei para a minha região, queria sair um pouco mais, para curtir. Saí do foco, arrumei uma namoradinha. Não dormia o suficiente. Meus resultados caíram. Foi então que decidi largar a namorada e voltei a treinar mais sério.”

Logo depois de um tempo sem conseguir obter bons resultados e de ter chegado a pensar em parar, Ederson se consagrou com a vitória sobre o grande adversário. “Eu nunca tinha corrido abaixo dos 14min. Naquele dia, no Troféu Brasil, tratei de grudar nele. Volta após volta, percebi que ele foi se perturbando, porque não conseguia desgarrar. A 200 metros do final, dei uma arrancada e fui com tudo. No final, não acreditava que tinha ganhado dele”, recorda Ederson.

A vitória rendeu um convite para participar da equipe Bradesco de corridas de rua, sob o comando do treinador Lauter Nogueira, conhecido também por ser comentarista do Sportv. O banco organizava um circuito de provas e oferecia premiações interessantes para os atletas. O vencedor levava R$ 5 mil, e esse montante ia se reduzindo até chegar a R$ 500, o prêmio do quinto colocado. “Ganhei um dinheiro bom naquela época. Foi graças a ele que consegui construir minha casa, em Caçapava”, diz o corredor. 

Nada mal para o garoto que começou a se dedicar mais aos treinos aos 16 anos de idade, quando passou a integrar a equipe apoiada pela prefeitura de São José dos Campos. Foi um passo importante na carreira de Ederson, que começara seis anos antes, em Caçapava.

“Eu tinha 10 anos de idade quando meu irmão, Leandro Vilela, começou a me chamar para treinar numa pista de 700 metros da Associação Atlética Caçapavense. O treinador era o Fernando Carlos Ribeiro. Ia mais para acompanhar meu irmão. Não gostava muito de correr. Naquela época, meu sonho era ser jogador de futebol. Meu ídolo era o Ronaldo fenômeno. Passei a Copa do Mundo de 2002 inteira grudado na TV, fascinado”, diz o corintiano.

A coisa ficou um pouquinho mais séria quando os melhores corredores de Caçapava foram chamados para defender a equipe Papa Léguas, de Cruzeiro, outra cidade da região do Vale. “A gente se animou um pouco mais, porque passamos a viajar para competir. Uma vez chegamos a ir até o Paraná. Saíamos de casa às 4h da manhã, e o ônibus da nossa equipe pegava a gente na Via Dutra.” Nessa época, Ederson começou a ganhar algumas corridas de rua, que ofereciam premiações como uma bicicleta ou alguma quantia em dinheiro. “Em 2005, ganhei a São Silvestrinha. Foi uma corrida de 1.000 metros, mas uma vitória muito importante, porque sempre fui fã da São Silvestre. Um dia ainda quero realizar o sonho de vencê-la”, diz o caçapavense, que foi o melhor brasileiro da prova em 2017, quando terminou na 12ª posição.

O bom desempenho pela Papa Léguas chamou a atenção da equipe de São José, que oferecia o atrativo ideal para cativar Ederson: uma ajuda de custo mensal de R$ 250. “Quando entrou dinheiro na jogada, a coisa ficou séria de vez. Vi que podia ganhar alguma coisa no atletismo”, diz o corredor que, orientado pelo pai, gastava apenas uns R$ 70 ou R$ 80 do salário. “Eu comprava uma calça ou reservava alguma coisa para comer um lanche ou ir a uma festinha. Era aquela coisinha de moleque”, lembra, com saudades. Nesse período, Ederson se destacou, conquistando o Campeonato Brasileiro Juvenil e os Sul-Americanos Menor e Juvenil. Esse destaque rendeu ao corredor o convite para treinar com D’Angelo, na Orcampi.

A despeito dos inegáveis progressos em Campinas, Ederson deu fim ao vínculo, que durou três anos. “Cansei de morar em alojamento com outros 14 atletas. É muita bagunça. Complicado dividir espaço.” Depois da passagem financeiramente interessante pela equipe do Bradesco, Ederson assinou contrato com o Pinheiros. Rigoroso, Castilho não permite que Ederson vá com sede à caça dos prêmios oferecidos pelas provas de rua. Muitos talentos do atletismo se perdem por esse motivo — de olho nas premiações, acabam se desgastando num número de provas excessivo, que suas pernas não podem sustentar.

A dedicação é premiada com a estrutura da melhor equipe do País, que, por meio de parcerias, viabiliza benefícios interessantes. Antes do Pan, Ederson pôde cumprir um ciclo de treinamentos na altitude de Paipa, na Colômbia. “A CBAt pagou a maior parte, passagem aérea e alimentação, e o clube arcou com hospedagem e transporte”, diz Castilho.

A escolha pelo Pinheiros está relacionada a objetivos de carreira elevados. Castilho e Ederson sabem que o sonho olímpico é apenas um sonho para fundistas dos 5.000 metros e 10.000 metros que não são africanos. “É difícil mesmo. É por isso que estamos pensando em me lançar na maratona, para que eu tenha mais condições de obter índice para Tóquio 2020”, diz Ederson. 

Nos 5.000 metros, o tempo de qualificação exigido pela Iaaf (Associação Internacional das federações de Atletismo) para Tóquio é 13min13s50, bem melhor do que o recorde sul-americano de Marilson. Nos 10.000 metros, é 27min28s, também distante das melhores marcas de Ederson.

Já na maratona, a marca exigida é 2h11min30s, algo que está no horizonte de possibilidades de atletas como Solonei, por exemplo (2h11min32s é seu PB). No ano passado, Daniel Chaves correu, em Valencia, para 2h11min10s. “Há um longo caminho a ser percorrido para que o Ederson chegue ao primeiro grupo de maratonistas, mas, por todo o seu histórico, ele tem perspectivas de ser um maratonista muito bom”, diz Claudio. Treinador e atleta não descartam uma estreia ainda este ano. Que venham os 42,195! 

*Por Alessandro Lucchetti

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