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As mulheres corredoras da Grécia Antiga

Na antiguidade, os gregos eram de uma misoginia sem par. Enquanto rapagões pelados corriam e lutavam nos Jogos Olímpicos, as mulheres não podiam sequer ver as competições – quem desafiasse a regra seria condenada à morte.

Mulheres competindo, então, nem por sonhos.

Sabedor disso, fiquei agradavelmente surpreso ao ver, no Museu Nacional de Arqueologia de Atenas, um vasinho de cerca de 2.500 anos em que mulheres corredoras são homenageadas. Dias antes, já tinha visto, no Museu de Arqueologia da Ilha de Rodes, um vaso enfeitado com pinturas de corredores.

O desenho é muito semelhante àquele que tradicionalmente aparece nas camisetas com ilustrações que remetem à maratona: três supermusculosos atletas pelados, a perna esquerda erguida, a direita servindo de apoio e impulso para o movimento.

Os homens são observados por duas outras figuras, estas vestidas. Todas as representações humanas estão em preto sobre fundo branco

O vaso em questão mais parece uma sopeira, gordito que é. Trata-se de uma obra produzida entre os anos 520 e 500 antes de Cristo, segundo as informações disponíveis no museu. Foi encontrada em um sítio arqueológico em Marmaro, uma ilha do arquipélago de Creta.

Ainda no museu de Rodes, uma ânfora mostra desenho de uma corrida chamada hoplites, em que os atletas participavam vestindo uniforme militar completo, levando até seus escudos. Essa modalidade estreou na 65ª edição dos Jogos, em 520 antes de Cristo, e era disputada na distância de duas stadia –cerca de 400 metros.

O vaso em questão é mais “jovem”: foi feito e pintado entre 450 e 425 antes de Cristo. A técnica usada é diferente da empregada na pintura dos corredores nus; aqui, o fundo todo é negro, e o recorte do fundo faz emergir as figuras dos atletas.

Outra mudança é que os guerreiros paramentados correm para a esquerda –em todas as outra ilustrações de vasinhos que vi, os corredores se dirigem para a direita.

Tendo encontrado essas relíquias com homenagens a corredores, em minhas outras visitas a museus durante recente viagem à Grécia tratei de ficar atento para ver se encontrava mais referências gráficas às corridas da Antiguidade.

Valeu a pena. O Museu Arqueológico Nacional de Atenas, que é absolutamente maravilhoso, imperdível em qualquer viagem à Grécia, está com uma ala inteira repleta de vasinhos milhares de anos de existência.

Logo a primeira sala é dedicada aos vasos, pratos, ânforas e outros objetos decorados com motivos esportivos.

Não há destaque especial para as corridas –imagens de boxeadores e lançadores de dardos recebem posto mais nobre na exposição–, mas lá estão os pratinhos recheados de corredores.

Há um “aquário” inteiro com objetos em que estão pintados corredores. O que achei mais bacana é uma espécie de pratinho de lasanha, todo preto, com um corredor pintado no centro, em negativo sobre um círculo branco (ou cor de telha, vá lá).

Outro bem interessante é um pedaço de ânfora em que há não só a pintura de um atleta como também uma inscrição que informa a competição em que ele participa: “Estou correndo o diaulos”, diz o texto gravado na cerâmica.

O diaulos era um “duplo stadion”. O stadion era a corrida básica dos Jogos Olímpicos da Antiguidade, a primeira prova que existiu e que era disputada na distância da pista central do estádio (daí o nome). Em geral, cerca de 200 metros: em Olímpia, era de 192,27 m, em Atenas, 184,96 m.

O diaulos começou a ser disputado a partir da 14ª edição dos Jogos da Antiguidade, em 724 antes de Cristo – a primeira edição, como se sabe, foi realizada em 776 antes de Cristo (de fato, essa é a primeira edição de que há registro escrito dos nomes dos vencedores; estudiosos acreditam que os Jogos já eram realizados em Olímpia desde o século 10 antes de Cristo.

Para mim, porém, a estrela da exposição é uma ânfora elegantérrima, superlongilínea, de formato semelhante a vasos destinados a uma flor apenas. Nela estão pintadas três mulheres correndo, todas vestidas com algo semelhante a uma túnica.

Em tudo a ilustração surpreende, pois é muito mais detalhada e complexa do que as demais – estas, em geral, com imagens claras sobre fundo escuro ou vice-versa.

As mulheres corredoras têm a pela clara, mais clara que o fundo cor de telha, e vestem túnicas escuras com listras brancas (que lembra o famoso padrão “risca de giz”, largamente empregado em ternos masculinos no século passado; talvez ainda seja usado hoje em dia, mas meus conhecimento de moda não passam disso).

As mulheres correm em frente a um altar, segundo a legenda das peças. A ânfora tem pouco menos de 2.500 anos: foi produzida, de acordo com estimativas dos arqueólogos, por volta de 480 antes de Cristo.
Ou seja, cerca de 300 anos DEPOIS da primeira edição dos Jogos Olímpicos.

O que faz muito sentido porque, segundo historiadores dedicados à busca de informação sobre o passado do esporte, não durou muito tempo –em termos históricos—a proibição para as mulheres praticarem esportes.

A partir do século seis antes de Cristo –portanto, dois séculos depois da época dos primeiros Jogos Olimpícos—começou a ser realizada a Heraia.
Trata-se duma Olimpíada para mulheres; o nome do evento é derivado de Hera, mulher de Zeus e deusa das mulheres e do casamento.

Na época, os nomes dos vencedores dos Jogos masculinos já eram registrados por escrito; não há razão para não crer que isso também acontecesse no caso dos Jogos femininos. No entanto não parece que tais documentos sobreviveram.

Tanto é assim que a primeira história da Heraia de que se tem notícia –e que baseiam todos os textos que encontrei—é de um estudioso que viveu no século dois depois de Cristo, Pausanias.

Geógrafo, ele escreveu uma detalhadíssima “Descrição da Grécia”. Na obra de dez volumes, há dois parágrafos destinados à Heraia.

Por eles ficamos sabendo que os Jogos Femininos constavam de apenas uma prova, uma corrida em distância um pouco menor do que a da prova disputada pelos homens.

Vestidas com túnicas, as mulheres –necessariamente virgens—percorriam cinco sextos da pista, uma distância de cerca de 160 metros.

As provas eram divididas em faixas etárias. Havia três grupos: as crianças, as adolescentes e as mulheres jovens.

As vencedoras recebiam como prêmio uma coroa feita com ramos de oliveira, um pedaço da carne da vitela sacrificada em homenagem a Hera e o direito de terem suas imagens gravadas e preservadas no santuário da deusa.

Não há registro de que, nos vasos, as imagens das corredoras fossem de algumas mulheres específicas; os rostos parecem todos iguais ou, pelo menos, muito semelhantes uns aos outros.

A ânfora em homenagem às mulheres corredores foram produzidas nas oficinas de um ceramista que passou à história como Pintor de Beldam. Trata-se de um lekythos, um tipo de vaso utilizado para armazenar óleo de oliva.

Rodolfo Lucena

59, é jornalista, gaúcho, gremista, cachorreiro, escritor e ultramaratonista – já fez mais de 30 provas longas em cinco continentes. Autor de “Maratonando” e de “+Corrida”, atuou na Folha de S. Paulo por mais de 25 anos, faz o Blog do Lucena (lucenacorredor.blogspot.com) e o Maratonando com o MST (mstmaratonando.wordpress.com).

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