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Corrida é música em movimento

Tenho poucos amigos.

Um deles é Fernando Rosa, um sujeito nascido no distrito de Pinheirinho, interior de Santo Antônio da Patrulha, não o para lá da praia, do litoral: mais lá para as bandas de Taquara, na encosta da serra.
Naquele fim de mundo, ele ouvia rádio. Era o que tinha na época, radião de mesa, radinho de pilha, rádio médio de carregar no ombro. Fazia a ligação com o mundo, com a música.

Fernando não entendia inglês, lá naquelas grotas do Rio Grande do Sul, mas se ligou na música. Virou jornalista, foi trabalhar na Rádio da Universidade. Lá nos conhecemos e, juntos, fizemos poucas e boas para sacolejar as teias de aranha da engravatada emissora chapa branca, tudo com o apoio do grande jornalista Carlos Urbim e sob o beneplácito da magnífica Iara Bendatti –os dois já não são deste mundo, para tristeza do jornalismo, da cultura gaúcha e de todos com quem com eles conviveram.

Fizemos jornal clandestino e política ombro a ombro, discurso nas ruas, porradaria com a polícia, aquela coisa toda dos tempos da ditadura –que volta hoje, para desgraça do povo e do país. Cada um tomou seu caminho.
Fernando cresceu agarrado na música, roqueiro de coração e de ação. Virou um dos maiores especialistas em roquenrol neste Brasilzão, garimpador de talentos, descobridor de bandas e realizador de um sensacional festival de roque chamado El Mapa de Todos (vai rolar em novembro em Porto Alegre).

Com tudo isso ainda acha tempo para descobrir sons novos e orientar os amigos nos caminhos da canção nova. Para mim, que continuo um cara Beatles e Rolling Stones, com uma pitada de Yes, alguns acordes de Pink Floyd e um riff do Moody Blues, é sopa no mel.

Vai daí que ele me apresentou para uma banda espanhola chamada Vetusta Morla, apregoando que a dita cuja tinha um sonzaço de aço.

Vamo que vamo, na custa dar uma olhada…

Quando dei uma olhada, descobri corredores na capa de um dos álbuns da banda. Fiquei doidão: precisava ouvir a banda, saber por que tinham escolhido aquelas imagens, o que rolava afinal, e o que era a tal Vetusta Morla.
Descobri que o nome é uma homenagem a um personagem do livro (e filme e mais umas tantas coisas) “Uma História Sem Fim”, a tartaruga gigante Morla. Vetusta, como sabemos, em espanhol como em português, é velha, antiga, respeitável (sempre falamos das Vetustas Arcadas quando nos referimos à faculdade de Direito do Largo de São Francisco…). Vai daí, o nome da banda, para simplificar as coisas, é tartaruga velha.

Tudo a ver conosco, os corredores. Roberto Losada, um dos decanos dos corredores de rua de São Paulo, criador do jornal e do site “Atividade Física”, criou a “Turma da Tartaruga”, que tive a honra de acompanhar algumas vezes pelo asfalto da cidade. Vários grupos de atletas usam o bichinho como símbolo… Bueno, o fato é que o álbum “La Deriva”, terceiro disco da banda, tem muito mais que a ilustração de capa dedicada a corredores. TODOS os videoclipes do disco trabalham a imagem do homem em movimento, pelado, nu com as mãos nos bolsos e correndo, andando, agindo, explodindo, quase voando.

O estranho, para minha limitada compreensão da arte, é que NENHUMA das músicas trata de corrida. A mais próxima de usar inspiração esportiva é chamada “Tour de France”, e tem uma batida muito coração bobo, pode bem entrar em playlists de corredores que gostam de se exercitar a um ritmo forte. O fato, senhores e senhoras, é que os caras foram muito além da relação direta, que exigiria letras temáticas para ligar o som e o tom à forma e à expressão. Eles pegaram, como se diz, o espírito da coisa.

E dizem isso com todas as letras quando dão o mote de seu álbum: “À deriva como trânsito para um ponto de chegada, quase sempre desconhecido. À deriva como um espaço em que a mudança e a transformação são possíveis, assumindo ao mesmo tempo temores, saudades e esperança pelo tempo que se aproxima. À deriva como descontrole, sem nada nem ninguém no comando, como violência ou calma, à mercê da natureza. À deriva como experiência que facilita a empatia, a identificação ou sentimentos compartilhados por todos que se veem imersos nela.”

Vou dizer: é tudo mais ou menos como correr, na corrida do asfalto ou da vida. Eles levam para suas composições o som, o calor e a alma do correr; fazem da corrida música em movimento.

Rodolfo Lucena

59, é jornalista, gaúcho, gremista, cachorreiro, escritor e ultramaratonista – já fez mais de 30 provas longas em cinco continentes. Autor de “Maratonando” e de “+Corrida”, atuou na Folha de S. Paulo por mais de 25 anos, faz o Blog do Lucena (lucenacorredor.blogspot.com) e o Maratonando com o MST (mstmaratonando.wordpress.com).

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