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Haile destrói sem dó sonhos de velhinho corredor

Pois Haile veio ao Brasil. Os corredores falamos dele assim, com essa intimidade: Haile. A maioria de nós pronuncia Hai-lê, com a tônica na sílaba final; no idioma etíope, porém, a palavra ganha uma delicadeza extra, com a tônica na primeira sílaba, levemente acentuada: Hái-le, sendo a primeira sílaba um ditongo decreste.

O cara, porém, não tem nada de delicado, como mostra sua folha corrida. Nascido pobre na miserável Etiópia, que hoje ocupa a 174ª colocação no ranking Índice de Desenvolvimento Humano – o Brasil está em 75° lugar e a Noruega, em primeiro-, Haile Gebrasellassie dominou o mundo das corridas de longa distãncias por cerca de duas décadas.

Nesse período, estabeleceu 27 recordes mundiais nas mais variadas distâncias – ficou famoso, porém, pelas marcas fabulosas nos 5.000 metros, nos 10.000 m e na maratona. Hoje aposentado do atletismo, aos 42, é um próspero homens de negócios – um ricaço mesmo, dono de vários empreendimentos, de venda de automóveis a um sensacional resort.

Apesar de toda a fama e fortuna – basta dizer que seu apelido é Imperador -, o cara continua fiel a seus patrocinadores. E foi para atender a interesses da fabricante de calçados esportivos cuja marca leva na camisa que Haile veio ao Brasil.

Sua visita foi tão rápida quanto ele mesmo. Chegou na sexta, cumpriu agenda no sábado em São Paulo, viajou para o Rio, onde repetiu a dose, voltou a Sampa e se foi do Brasil neste segunda.

“Sem Carnaval!”, disse ele, todo sorridente, enquanto era abraçado, tocado, homenageado por uma pequena turma de corredores em um recanto próximo à Cidade Universitária, em São Paulo. Eram atletas amadores de uma assessoria esportiva ligada à patrocinadora de Haile.

O programa era curto: uma curta corrida festiva com umas poucas dezenas de convidados, participação num evento de entrega de prêmios, sessão de autógrafos e pose para fotos e selfies com os fãs. No final de tudo, teria alguns minutinhos corridíssimos para falar com a imprensa.

 

Beleza. “Melhor que nada”, pensei, já imaginando o texto iria produzir para minha estreia no serviço on-line da revista “O2” – esta própria coluna que você lê neste momento. E queria a chance de correr com mais um monstro do atletismo.

Digo “mais um”, pois já participei de uma corrida festiva, num evento semelhante, com o queniano Geoffrey Mutai, que, na época de nosso enfrentamento no asfalto do Ibirapuera, era o maratonista com a mais rápida marca da história. Não valia para recorde, mas era 2h03min02 –tá bom  prá você?

E não fiquei apenas nos maratonistas. Tive oportunidade de conhecer o jamaicano Asafa Powell –ex-recordista mundial dos 100 m. Corri com ele numa pista improvisada montada sobre a neve, quase no topo de uma montanha gelada na Suíça.

Agora, Haile. O cara era só simpatia quando chegou, fez pose para foto, abriu sorriso, cumprimentou uns e outros, assinou montes de camisetas, caderrnos e cartões (fotos de minha lavra). Daí foi para o asfalto na USP, do ladinho mesmo de onde estávamos.

A massa foi junta, umas 30 ou 40 pessoas, talvez. Alguns se colocaram ombro a ombro com o Imperador. Mais modesto –e confiando no que haviam dito, de que ele sairia na boa-, fiquei um pouco atrás, imaginando que logo poderia até acelera e ficar mais perto do super-hiperrecordista.

Não era um sonho de uma noite de verão. A marca de Mutai era quase um minuto melhor do que a melhor marca de Haile na maratona e, mesmo assim, naquela sessão no Ibirapuera deu para acompanhá-lo por quase cinco quilômetros –depois ele seguiu mais rápido,e aí só uns poucos foram capazes de se manter com ele.

Imaginando que Haile faria coisa semelhante, acalentei sonhos de correr lado a lado com o Imperador, dois veteranos em amistoso desafio –ainda que eu seja quase 20 anos mais velho do ele; aliás, acho que eu era o mais velho de todos os que estavam naquele evento.

Largamos!!

E não foi nada do que eu esperava, nada do que se tinha combinado, nada do que haviam anunciado. O cara largou correndo e quem pudesse que fosse com ele.

Em poucos segundos, começaram as exclamações, a surpresa de corredores mais lentos com o ritmo que nos era imposto.

Olhei para o meu GPS e quase tive um infarto: estava a 4min30 por quilômetro naquele instante. Saiba você que já fui capaz de manter esse ritmo em corridas por duas oportunidades, em uma prova de oito quilômetros, e em um desafio de seis quilômetros, ambos realizados no século passado.

Por incrível que pareça, aqueles instantes duraram uma eternidade, talvez 15 segundos, talvez 20 segundos, e logo o relógio já marcava 5min30 e caindo (ou subindo, conforme a ótica do leitor).

Não fui só eu o surpreso. Quando Haile passou o primeiro quilômetro em 3min31 (ou 3min30, segundo outros), o espanto era geral, até mesmo de um dos treinadores que participara da organização da corrida comemorativa.

Bom, antes de completar o primeiro quilômetro eu já nem via mais o pelotão da frente, o que dirá Haile! Vai daí que, metro sobre metro, suor sobre suor, vi desabar meu sonho de correr ao lado do Imperador. O devaneio deste velhinho corredor foi reduzido a pó, sem dó, pelo ritmo impiedoso do multirrecordista mundial etíope.

Pelo menos tiramos uma foto juntos, que fez muito sucesso nas redes sociais e reproduzo aqui (gentileza da grande fotógrafa Fernanda Paradizo).

E, depois de mais um chá de cadeira, finalmente consegui fazer a entrevista com Haile Gebrselassie, por muitos considerado o mais completo e melhor corredor de longa distância de história.

O tempo de espera para falar com ele foi inversamente proporcional aos escassos minutos em que pude fazer algumas perguntas para o cara. Pelo menos foi uma conversa exclusiva, cara a cara, acompanhada apenas pelos assessores encarregados de controlar o tempo a que tive acesso a Haile.

O resultado está abaixo. Espero que você goste, compartilhe, comente e volte sempre a este novo espaço de minha atuação no mundo internético.

RODOLFO LUCENA – O senhor ainda pensa em se candidatar a presidente da Etiópia?

HAILE GEBRSELASSIE – Sim, eu penso nisso, mas não sei exatamente quando isso poderia acontecer, porque eu estou fazendo muitas coisas hoje em dia. Tenho muitos compromissos, negócios, mas quem sabe? Eu acho que a vida política será meu último objetivo.

O que o senhor pretende fazer se chegar a presidente da Etiópia?

Muitas coisas. Quero compartilhar minha experiência, as coisas que aprendi no mundo. Não é fácil, são 25 anos de experiência que eu tenho [NR.: na elite mundial do atletismo]. Estive em mais de cem países, é muita coisa, acho que posso fazer muito por meu país. Eu quero fazer alguma coisa pelo meu país.

O que o seu país mais precisa?

Educação é a questão mais importante; acabar com a pobreza também. Nós precisamos erradicar a pobreza, alguma coisa precisa ser feito. No meu país há mais de 100 milhões de pessoas, e nós precisamos ter alguma coisa importante, alguma coisa boa para o futuro de todos eles.

O que o senhor pensa das denúncias de corrupção e acobertamento de doping na IAAF? 

Eu digo para você: essa coisa toda está matando o atletismo. Está matando os jovens. Quem será o modelo para eles, para esses jovens que trabalham e suam em suas vilas? Eu gostaria muito que não houvesse um problema como esse. Mas, se as coisas estão mesmo desse jeito, eu acho que eles precisam tomar providências, fazer um movimento sério para nos livrarmos de todos esses problemas. É bom para o esporte. Se deixarem passar batido, protegendo, acobertando os responsáveis, as coisas continuarão do mesmo jeito.

Você ouve todas essas coisas ruins. Escândalo de doping, escândalo de corrupção, eu não entendo porque essa gente está fazendo essas coisas. Eu fico muito triste com isso, eu digo para você: estou muito triste.

Em resposta aos escândalos de doping, surgiu a proposta de desconsiderar os recordes mundiais da última década. O que o senhor pensa disso?

A questão não é sobre os recordes, a questão é sobre os jovens. Nós precisamos pensar nos jovens [atletas]. Imagine os jovens que estão suando, treinando em suas vilas. O que nós vamos ensinar a eles? Em vez de fazer as coisas por suas próprias forças, vão dizer: “Não posso fazer isso sem doping, eu não posso fazer isso sem usar um remédio”. Eu não quero ver isso acontecer. Não quero ver os jovens desenvolvendo esse tipo de mentalidade.

Não tem sentido cancelar tudo o que já foi feito, essa não é a questão. O que está em jogo é o futuro do atletismo. É preciso pensar em algo bom.

O senhor acredita que é possível fazer a maratona em menos de duas horas?

Claro, com certeza, não há dúvida sobre isso. As pessoas falam, pensam que isso só seria possível com doping, mas não é nada disso, não, não, não. Sem pílulas, sem drogas, atletas podem conseguir, podem correr assim. A única coisa que eles precisam saber é a tática, o descanso, o treinamento; combinam tudo isso, eles poderão conseguir alguma coisa.

Quando comecei a correr maratonas, as pessoas diziam que era impossível fazer uma maratona em 2h02. Mas eu estava treinando para fazer duas horas e dois minutos. Eu não consegui, mas pelo menos fiz abaixo de 2h04 [NR.: Haile foi o primeiro homem na história a correr a maratona em menos de duas horas e quatro minutos]. Agora, alguns anos mais tarde, é possível que alguém corra em 2h02.

Mas nós estamos falando agora de maratona em menos de duas horas. Sim, é possível. Quando? Nunca se sabe quando um recorde será quebrado. Quando Abebe Bikila [NR.: etíope vencedor da maratona olímpica de Roma] quebrou o recorde, sua marca foi de 2h15 [NR.:2h15min16]. Isso foi há quase sessenta anos. Então, é possível baixar…

Qual foi o momento mais feliz de sua vida de corredor?

O momento mais feliz de minha vida de corredor foi em Sydney-2000, na Olimpíada [NR.: Haile conquistou a medalha de ouro nos 10.000 depois de uma renhidíssima disputa com o queniano Paul Tergat]. Aquele foi um momento muito especial, quando conquistei meu segundo ouro. E também o recorde mundial em Berlim [NR.: na maratona] e o recorde mundial em Zurique, em 1995 [NR.: nos 5.000 m]. Mas a Olimpíada foi algo muito especial [abre um largo sorriso].

Por que a Olimpíada é tão especial?

É a Olimpíada. Acontece apenas a cada quatro anos. Quantos corredores conseguem se manter em ótima forma por quatro anos? Muito poucos. Então venceu em uma Olimpíada é muito especial.

E qual foi o momento mais triste?

Nova York, 2010 [NR.: naquele ano, com dores, Haile abandonou a maratona e, quase em seguida, anunciou que iria se aposentar do atletismo]. Foi muito, muito duro para mim.

 

Rodolfo Lucena

59, é jornalista, gaúcho, gremista, cachorreiro, escritor e ultramaratonista – já fez mais de 30 provas longas em cinco continentes. Autor de “Maratonando” e de “+Corrida”, atuou na Folha de S. Paulo por mais de 25 anos, faz o Blog do Lucena (lucenacorredor.blogspot.com) e o Maratonando com o MST (mstmaratonando.wordpress.com).

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