A fome por medalhas da holandesa Leontien van Moorsel

Atualizado em 20 de setembro de 2016
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Por Lucas Cyrino

O olhar do juiz de prova segue para os pedais da bicicleta. Fiscaliza se os pés estão bem presos à bicicleta. A cena é repetida mais uma vez, acompanhada de uma leve mexida na perna direita, preparada para o arranque. É possível afirmar que Tinus está ansiosa. Os olhos vão longe, mira toda a extensão da pista. O batom vermelho se mantém impecável em torno dos lábios, já os olhos maquiados se escondem por trás dos óculos de competição e ficam quase invisíveis com o auxílio do capacete.

Antes de pedalar pelo velódromo da Olimpíada de Sydney, em 2000, ela solta o ar do pulmão, relaxa a mente e libera a explosão de adrenalina toda nas pernas. De pé, Tinus soca os pedais para baixo, ganha velocidade para só depois tomar a posição aerodinâmica com as duas mãos no clipe da bicicleta. Aí começa a perseguição de 3 km na semifinal contra a neozelandesa Sarah Ulmer. Vence quem completar antes a distância ou quem ultrapassar a adversária antes disso. A pedalada de Tinus é mais intensa, e assim ela vence. Uma das mãos deixa o guidão e soca o ar, enquanto o batom se expande em sorriso. O tempo de 3min30s816 crava os novos recordes mundial e olímpico.

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A façanha é de Leontien Martha Henrica Petronella Zijlaard-van Moorsel. O nome quase impronunciável para nós brasileiros carrega em si uma das maiores ciclistas de todos os tempos. Mais fácil chamá-la pelo apelido: Tinus.

O que aquele sorriso escancara em uma semifinal de olimpíada é a batalha que a dona encarou para chegar até aquele momento. Seis anos atrás, Tinus já tinha quatro títulos mundiais: a perseguição de 3 km e os 50 km por equipe em pistas (1990) e o bicampeonato em estradas (1991-1993). Era também bicampeã do Tour Feminin, a versão feminina do Tour de France (1992-1993), em disputas épicas com a francesa Jeannie Longo.

A maior rival

Não é difícil de imaginar que alguém com tantas conquistas treinasse muito. E nessa busca frenética pela perfeição, a alimentação tem seu papel fundamental. A perda de peso é uma constante no mundo do ciclismo e, nesse caso, virou uma obsessão. Sem perceber, Leontien van Moorsel entrava em uma batalha que duraria dois anos: a anorexia. O transtorno alimentar maquia a perda de peso doentia. O medo de um grama a mais transforma a balança em uma adversária perigosa e faz acreditar que quanto mais leve, mais rápido. Uma fatal ilusão também no esporte de grande rendimento. E foi exatamente quando o desempenho caiu que Tinus resolveu abandonar o ciclismo e se tratar.

Ela só voltou a ser ciclista novamente em 1996. Para isso, juntou-se a Hans Van Kasteren na tentativa de equilibrar e sincronizar cabeça e pedal. Deu certo, e não demorou muito para os resultados voltarem a aparecer. Dois anos depois, ela já seria campeã mundial de contrarrelógio, feito repetido em 1999. A essa altura, na década de 1990, Tinus já somava seis títulos mundiais. Petronella Zijlaard-van Moorsel estava de volta. Mas ainda faltava coroar a carreira e transformá-la em uma peça importante da modalidade.

A provação

Nos Jogos Olímpicos de Sydney, apesar do retorno e da conquista dos dois mundiais após o caso de anorexia, ela ainda era uma incógnita. Os críticos não confiavam na recuperação plena da holandesa, duvidavam da capacidade de superação da ciclista. Tinus teria de se colocar à prova mais uma vez.

Como nas semifinais da perseguição de 3 km contra a neozelandesa Sarah Ulmer ela havia assombrado o ciclismo com aqueles dois recordes, na final entrou como grande favorita. A prova foi contra a francesa Marin Clignet. Os 3 km rodados pelo velódromo Dunc Gray, de 250 metros, foram quase 3 segundos mais lentos do que na semi do dia anterior, mas significaram um ouro para a Holanda. Leontien Martha Henrica Petronella Zijlaard-van Moorsel ainda carregaria para casa uma prata, na corrida por pontos, encerrando assim a atuação em pista fechada.

Era vez de ir para a estrada em Sydney. Foram 119,7 km pelas ruas da cidade australiana. A largada foi dada com asfalto seco, mas logo a chuva fez com que as ciclistas diminuíssem a rotação e adotassem uma postura mais cautelosa. As curvas eram abertas, com distância entre as bicicletas, receita básica para que as fugas aparecessem. Mas elas não se deram bem e foram neutralizadas sem grande esforço pelo pelotão. A decisão seria no sprint. Nos últimos metros, Tinus partiu deixando as adversárias na briga pela medalha de prata.

Faltavam ainda os 31,2 km do contrarrelógio. Mais uma vez Leontien Zijlaard não deu chances. Ela chegou 37 segundos na frente da segunda colocada, Mari Holden, dos Estados Unidos, para rechear o pescoço com mais um ouro. As quatro medalhas em Sydney fizeram de Tinus a maior medalhista do ciclismo em uma única edição dos Jogos Olímpicos, o que permanece até hoje.

A insaciável 

Após o fim da Olimpíada, a fome da ciclista holandesa por vitórias não cessou. Um ano depois, Tinus levou mais uma vez a camiseta de arco-íris de campeã mundial na perseguição de 3 km e continuou vestindo essa camiseta em 2002 e em 2003.

O desafio continuou no velódromo, mas em um dos recordes mais tradicionais e desejados do ciclismo: o recorde da hora, que coroa a ciclista. Em uma hora, ela conseguir alcançar a maior distância na pista, uma obsessão entre os competidores. Leontien Zijlaard dedicou boa parte daquele ano a quebrar a marca. Quando se sentiu preparada, comprou uma passagem de ida para a Cidade do México. Lá, montou na bicicleta preparada para o recorde e estabeleceu o tempo de 46 km e 65 metros. A marca perdurou por 12 anos.

Terminada a façanha, era preciso voltar a treinar para os próximos Jogos Olímpicos. Em 2004, vieram os Jogos de Atenas. Leontien Zijlaard alternou pista e estrada, como de costume. Na cidade grega conseguiu mais um ouro, no contrarrelógio, e um bronze na sua grande especialidade: a perseguição de 3 km.

É preciso fazer contas, somar e refletir para entender o que essa mulher nascida no dia 22 de março de 1970 em Boekel, uma cidadezinha que hoje tem pouco mais de 10 mil habitantes no norte da Holanda, realizou em 12 anos de ciclismo profissional. Foram nove títulos mundiais, seis medalhas olímpicas, entre elas quatro de ouro, dois Tour Feminin e um recorde da hora.

Também é preciso perguntar o que ela faria se tivesse condições de disputar a Olimpíada de Atlanta 1996, já que era campeã mundial de estrada um ano antes. Quantos ouros essa mulher poderia ter vencido? O distúrbio alimentar que pode levar à morte impediu que essa resposta fosse dada, mas ela voltou para fazer o que fez. A carreira acabou logo após os Jogos de Atenas e, hoje, ela se dedica a dar palestras, passando para a frente o aprendizado sobre a superação dos obstáculos e as técnicas de como vencer de forma saudável.