Louro não é mais o último olímpico na pista

Atualizado em 17 de outubro de 2016
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A sala é ampla, a poltrona é confortável. Mas nenhum elemento decorativo ali indica que o interlocutor, sentado no sofá à frente da equipe de reportagem da VO2bike, naquela boa casa, situada nas proximidades do Mercadão de Santo Amaro, é um lutador do pedal. Nenhuma foto dos tempos de ciclista olímpico, nenhum troféu, nenhuma lembrança.

Fernando Louro guarda suas bikes num quarto situado acima de uma escada, no quintal dos fundos. E lá estão as lembranças dos Jogos de Moscou, as fotos de Seul, a credencial utilizada em Barcelona. A maior parte das magrelas são para mountain bike, sua nova paixão. Talvez seja mais adequado dizer que são sua única paixão, a que restou. O ciclismo de pista, que o tornou famoso no Brasil (famoso no restrito meio do ciclismo nacional), não era para ele apaixonante. Apesar desse relacionamento frio e de interesse, Louro foi, por muito tempo, o último a representar o país em provas de velódromo. Até surgir Gideoni Monteiro, que recolocou o Brasil no mapa dessa vertente do ciclismo. Louro pedalou indoor em três edições da Olimpíada. De 92 até 2012, nada de Brasil no ciclismo olímpico de pista.

Não existe ciclista de velódromo sem velódromo. É uma obviedade. Louro é cria do velódromo da Universidade de São Paulo. “Havia lá a Escola de Ciclismo”, lembra ele, e as lembranças dos anos 70 e 80 começam a desenhar a ponta de um sorriso. E falar de ciclismo no Brasil é falar de Caloi, a marca das bikes que as crianças ganhavam, a marca das bikes que os ciclistas dos velódromos que existiam pedalavam. E falar de Caloi é falar de Bruno Caloi, presidente da empresa, dirigente da Federação Paulista. Um nome fundamental.

Para se ter uma ideia do investimento da marca, Louro conseguiu fazer um estágio na Itália, para pedalar treinando, aos 18 anos de idade. E a Confederação colaborava. “A CBC comprou várias bicicletas de pista. Começou a haver um desenvolvimento nesse segmento. Tínhamos os heróis, como o Argenton (Anésio Argenton, o araraquarense que até hoje é o único brasileiro com medalha de ouro nos Jogos Pan-Americanos [59] e quinto colocado na prova olímpica de velocidade dos Jogos de Roma, em 60). Queríamos dar continuidade a essa história”, diz Louro.

Louro pedalou em meio a gente talentosa, alguns mais velhos, outros de sua geração: o grande Antônio Silvestre, Clóvis Anderson, Mauro Ribeiro (vencedor de uma etapa do Tour de France), Paulo Jamur, Antonio Carlos Hunger. Era a geração que comprou uma versão da Caloi 10 com quadro de geometria para pista.

Reportagens da época mencionam públicos de 14 mil pessoas no Velódromo da USP, hoje praticamente em ruínas, fechado desde os anos 90. “Já começamos a dar resultado na categoria júnior. Começamos a aposentar a geração anterior antes do tempo”, orgulha-se Louro, até hoje em forma, por pedalar mountain bikes.

Ele gostava muito mais da estrada, mas seus resultados apareciam na pista, talvez por ser muito alto, não ter o biotipo mais favorável para competir na vertente que mais gostava, sentir o vento, olhar para o céu, percorrer caminhos diferentes. Rodar na pista, e rodar, rodar, rodar, como um hamster, não era tão gostoso. Gostoso era vencer, e as vitórias teimavam em vir na pista, não na prazerosa estrada.

 

Divulgação ShimanoAo receber um pedido para dar dicas para ciclistas que queiram se dedicar à pista, Louro recomendou: “Eu não tenho boas lembranças da pista, você fica dando voltas e mais voltas. E tem sempre que atingir uma velocidade alta para que a força centrípeta aja e você possa ‘colar’ na parte mais alta da pista, que é inclinada. Se não estiver rápido, você despenca. Se eu fosse dar uma dica pra alguém que quer pedalar na pista, acho que ia sugerir pra não pedalar na pista”, sorri. “É muito duro, muito”.

O gosto pelo pedal o ajudava a enfrentar uma rotina árdua, de se submeter a ordens de treinadores com ideias fincadas no estilo militar de comandar. “A gente vinha de uma escola militar mesmo, com lavagem cerebral. Tínhamos que ficar na tal abstinência sexual, não podíamos ter carro. Fui um dos primeiros ciclistas de alto nível a ter carro no Brasil. Comprei um Fiat 147, e tinha que deixar o carro a três quadras do local de treino. Aí dava um sprint para chegar suado, dar a impressão de que tinha chegado de casa, pedalando vários quilômetros. Nosso técnico era um uruguaio muito linha dura, o Juan Timón. Quando descobriu que eu tinha carro, decretou: ‘Você morreu como ciclista’”.

Louro nasceu como ciclista gente grande no mesmo ano em que conquistou três medalhas de ouro num Pan-Americano Júnior, aos 18 anos de idade, em São Paulo. Foi em 80, o ano em que foi pedalar simplesmente nos Jogos Olímpicos de Moscou, representando o Brasil. Chegar à Olimpíada era uma realização, mas a incompreensão da mídia sobre a discrepância de nível entre as feras europeias e o Brasil, um país esforçado, mas lutando contra uma estrutura precária, machucava os ciclistas, causava escoriações na alma. “Você enfrenta os melhores do mundo, vai além do seu nível, e ainda assim fica longe da final. Aí vem a crítica. É uma mídia que praticamente só tem olhos para o futebol. E aí me lembro do Ricardo Prado (vice-campeão olímpico de 84 nos 400m medley). Ele bateu o recorde mundial da sua prova (em 82), voltou ao Brasil (de Guayaquil) e se recusou a dar entrevista no aeroporto, dizendo que ninguém tinha feito matéria sobre ele, ninguém acompanhara nada da carreira dele e que não se sentia na obrigação de falar com jornalista algum. Adorei o que ele fez, virou meu ídolo”, recorda, com sorriso vingativo.

Por falar em ídolos, as histórias olímpicas de Louro são gostosas de se ouvir. Ele lembra quando chegaram à Vila Olímpica de Seul, ligaram o rádio e botaram um volume alto, perturbando o sossego de ninguém menos do que Joaquim Cruz, campeão olímpico quatro anos antes, e que estava prestes a ser vice-campeão em Seul. O Cavalo, apelido que ganhou devido à imponência e facilidade para correr, queria descansar. “Poxa, esse pessoal do ciclismo chega fazendo zona”, bradou Joaquim. Sem querer reduzir uma das raras chances de medalha brasileiras, o pessoal do pedal se aquietou com a bronca do grande, do imenso campeão.

Ainda em Seul, Louro teve a noção do quão pequeno é o futebol numa Olimpíada. Chateados pela tal discrepância de atenção da mídia, os atletas dos esportes chamados amadores do Brasil não faziam questão de ir torcer pelos conterrâneos. “Um dia chegou o Taffarel perto da gente, pedindo para torcermos pela seleção. Ninguém queria saber de futebol”. Quem ignorava perdeu a chance de ver Romário em ação, num time que tinha Neto, Bebeto, Mazinho, Jorginho, Ricardo Gomes…Mas quem se importa, diante do espetáculo dos outros esportes, todos somados, todos tão pouco vistos, todos tão interessantes?

Contrastando com esses importantes nomes do futebol do passado, Louro enaltece os esforços daquele que chama de herói: Gideoni Monteiro, o cearense criado em Sergipe que deu sequência à linhagem de representantes brasileiros em provas olímpicas do ciclismo de pista, após interrupção de 24 anos. “É um herói”. Louro sabe do que está falando. Ele foi o último dessa linhagem por 24 anos. Graças a Gideoni, tornou-se o penúltimo.