Com verba de R$ 154, casal quer chegar até o Alasca pedalando

Atualizado em 04 de junho de 2018
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Marcelo Nogueira, 30, e Lizandro de Oliveira, 20, moram na estrada há um ano. Pedalando juntos pelo Brasil e pela América do Sul, eles já percorreram milhares de quilômetros com suas bikes, dormindo onde é possível e comendo o que está à mão. Junto com eles, uma passageira inusitada: a gatinha Névoa, adotada ao ser encontrada ainda bebê, “quase morrendo”, no meio do caminho.  

Lizandro e Marcelo na estrada (Todas as fotos: Projeto Totipah)

Tudo começou quando, há quatro anos, Marcelo teve uma ideia: fundaria um sítio para educar crianças com necessidades especiais, um espaço alternativo às construções sociais comuns: o Sítio Totipah. Por falta de verba, o projeto não foi em frente.

Mas a ideia original transformou-se, e surgiu o Projeto Totipah, que levaria Marcelo e sua crença em uma sociedade mais humana em uma viagem de bike pelo Brasil todo e rumo ao Alasca. “O Alasca, além de ter um papel forte no imaginário das pessoas, tem como grande atrativo a aurora boreal, e é isso que pretendo ver ao chegar lá”, sonha o sul-mato-grossense. 

Lizandro e Marcelo (Todas as fotos: Projeto Totipah)

Lizandro juntou-se ao projeto em Natal, onde morava. Sem experiência ciclística, ele pegou emprestada a bicicleta do pai e caiu na estrada com Marcelo. “Disse à minha família que iria por um mês e ainda não voltei”.

Uma das partes mais incríveis da viagem é que a verba total para cruzar a América do Sul, a América Central, os Estados Unidos e o Canadá para então alcançar o Parque Nacional Denali, no Alasca – um pedal que começou há mais de um ano e certamente durará mais outros – é de R$154. “Confio que toda a América vai nos acolher como fomos acolhidos no Brasil”, acredita Marcelo.

A dupla estava há 20 dias na Bolívia quando conversou conosco sobre o Projeto Totipah e os desafios de pedalar pelo Brasil e pelas Américas com muita esperança, muito amor e muito pouco dinheiro. Confira:

>>> VO2Bike: Como começou o Projeto Totipah?
Marcelo: Com um sonho meu de fundar o sítio Totipah, que seria um projeto educacional para crianças especiais. Para tentar levantar fundos para o projeto, decidi ir de bicicleta até o Chile para publicar um livro sobre civilizações passadas daquele lugar. Acabei indo até o Atacama e fiquei viajando por três anos. Depois desse tempo voltei ao Brasil e tentei me encaixar a uma vida “padrão” novamente em Salvador, onde minha mãe mora, mas não deu certo. Tive uma visão sobre a aurora boreal e decidi que seria meu próximo objetivo. Naquele momento, já tinha pedalado mais de 30 mil quilômetros.

>>>O que significa Totipah?
Marcelo
: O nome Totipah vem do gaélico arcaico e muda de contexto de acordo com a entonação. Em uma pergunta, indaga sobre o caminho do coração de seu interlocutor. Também serve como encorajamento. É uma palavra filosófica, que fala de caminhos, que convida as pessoas a lapidar seu dom e entender sua missão. Mas não em relação a ganância e sucesso, e sim para encontrar o seu brilho interior.


>>> Quantos quilômetros vocês já viajaram juntos?

Marcelo: Nosso caminho já sofreu alguns desvios. Saí de Salvador sozinho, conheci Lizandro em Natal, e logo estávamos viajando juntos, eu, ele e a Névoa, que é a gatinha que encontramos ainda bebê à beira de uma estrada, após passarmos por Fortaleza. Após algumas mudanças de planos, resolvemos descer até o Mato Grosso do Sul, de onde sou originalmente, e fazer de Corumbá nosso ponto de partida oficial rumo ao Alasca. Ao chegarmos em Corumbá, eu já tinha pedalado 9.000 km, Lizandro, 7.500 km, e Névoa tinha estado na garupa por cerca de 6.000 km.  Na verdade, já estou pedalando há muitos anos, e Lizandro, há cerca de dez meses. Mas falamos que estamos na estrada há um ano, para arredondar (risos).

>>> Como é a rotina de vocês na estrada?
Marcelo: Nossa rotina varia. Creio que pedalamos cerca de 80 km por dia, mas já houve dias em que paramos de pedalar após rodar 40 km, e já houve dias em que cumprimos quase 120 km. É preciso manter o ritmo para não perder o foco, se não paramos para curtir tudo e atrasamos demais a viagem (risos). Também dependemos muito das doações e atualizações de nossas mídias sociais, então temos que manter a coisa fluindo.

>>> Como lidam com dinheiro? Como pagam pela viagem?
Marcelo: No Brasil, nossa casa, ficamos mais à vontade e as pessoas ajudam mais. Aqui na Bolívia (onde estavam quando falaram com VO2 Bike), as pessoas não têm nos ajudado tanto com alimentação, então temos um gasto obrigatório com isso. Nossa verba inicial era de R$ 154, então contamos muito com a ajuda que recebemos das pessoas durante a trip, tanto pela estrada quanto através de doações em nosso site. Na Bolívia a água é salgada, mas nós não tínhamos dinheiro para comprar água mineral, então tivemos que tomar a salgada mesmo. Não caiu tão bem (risos). 

>>> Como é a questão da acomodação?
Marcelo: Como não temos dinheiro, nunca ficamos em pousadas nem hotéis. Temos uma barraca e dormimos em qualquer lugar onde ela caiba: praças, beiras de rio, quintais, postos de gasolina. Tentamos usar o Couch Surfing e o Warm Showers também, quando possível, mas não costuma dar resultado, as pessoas respondem nossas solicitações muito depois de termos passado por suas cidades. Pelo Warm Showers, às vezes conseguimos um número de telefone com WhatsApp e arranjamos uma acomodação, mas é raro. Já pedalamos até 700 km sem parar em uma hospedagem oficial. Quando encontramos uma, aproveitamos para lavar roupa, relaxar um pouco, dar um respiro da vida na estrada.

>>> Por que estão indo rumo ao Alasca? Qual o objetivo da viagem?
Marcelo: O grande chamariz é a aurora boreal, aquele fenômeno mágico, que nos serve de norte. Mas o Alasca tem uma conotação muito forte no imaginário das pessoas como um lugar que é sinônimo de aventura, de uma vida diferente. Aparece em muitos seriados, livros e filmes, como o Na Natureza Selvagem, que marcou muita gente. Mas além disso, queremos fazer parcerias pelo caminho, gerar conhecimento e atrair atenção para o nosso grande objetivo, que é fundar uma aldeia que mescle conhecimentos antigos com modernidade. Não queremos usar dinheiro nem energia elétrica, e sim focar em costumes de interação social diferentes. A bicicleta foi minha grande válvula de escape, comecei a viajar para poder ser eu mesmo, fora de uma sociedade que me oprimia. 

Névoa, a gatinha cicloviajante

>>> Vocês sentem muito preconceito por ser um casal gay, principalmente por estarem passando por lugares mais remotos, pouco cosmopolitas?
Marcelo: Não somos um casal que fica se beijando e anunciando que é um casal, mas muitas pessoas pelo caminho se sentem íntimas rapidamente e perguntam de nossas vidas. Por uma questão de militância, falamos que somos um casal, o que muitas vezes causa um choque ou deixa as pessoas sem reação. Mas não falamos com sensacionalismo nem com medo. Também faz parte do projeto levar mensagens de aceitação, contra o preconceito. Ser você mesmo e aceitar-se como é envolve muitas etapas, e também são partes da nossa missão. Dizemos, apenas, “somos um casal e não há nada de errado nisso”. E assim a semente da diferença é lançada por aquelas terras.

>>> Quanto pesam as bikes de vocês?
Marcelo: Não costumamos pesar as bikes. Da última vez que pesamos a do Lizandro, tinha entre 50 kg e 60 kg. A minha tinha entre 40 kg e 50 kg. Ganhamos de presentes alforjes novos, que vamos buscar em Lima, no Peru, e tivemos que comprar outro bagageiro dianteiro para mim, pois o meu quebrou.

>>> Vocês deixaram algumas coisa pelo caminho, que perceberam que era inútil?
Marcelo: Deixamos muitas roupas pelo caminho, ficamos só com as roupas mais leves, que secam mais rápido. Também abandonamos nossa máquina de barbear, que era de 220 volts, pois quase todos os países funcionam no 110. Teve uma época em que tínhamos muitas panelas, agora temos menos mas conseguimos comprar um fogareiro. Mas sabemos que levamos muitas coisas de que uma cicloviagem não necessita, como a gata. Também tenho um ukulele, tambores, gaita, maracas (risos). A Névoa e a música conectam as pessoas a nós e também funcionam como uma terapia. Então o peso compensa, pelo carinho a mais que recebemos.

>>> Que dicas vocês dão para quem pretende fazer uma cicloviagem longa?
Marcelo: Minha dica principal para quem vai fazer cicloviagem longa é ter clareza na motivação. Você vai passar por vários perrengues e questionamentos. Se a motivação não for profunda, vira tortura e sofrimento. Já acompanhei outros civloviajantes, e alguns deles desistiram. Tento mostrar o “lado B” da viagem, o lado que não é fácil. Quando você só mostra fotos lindas e textos de experiências incríveis, todo mundo fica com vontade de fazer isso – mas não é fácil. 

>>> Que lugares foram os favoritos de vocês até agora? 
Marcelo: Adoro viajar pelo nordeste, acho que é o coração do Brasil. Também gostei muito de pedalar pela Transamazônica, por toda a história e significado que ela tem para o Brasil, é uma estrada permeada de influências e conflitos ambientais. O que ela tem de sofrida para pedalar, tem de maravilhosa. Em Goiás, provamos o melhor tempero do Brasil! Já no sudeste, a viagem fica mais fria. Em São Paulo, as pessoas nem olham para você. No Rio de Janeiro, ficam com o pé atrás, acham que é golpe ou assalto. O Rio, compreensivelmente, é muito complexado com violência. 

>>> E que partes evitariam?
Marcelo: Recomendo evitar os 400 quilômetros finais da rodovia Santarém-Cuiabá. Não tem acostamento e é uma loucura com tantos caminhões e carretas, é “fina” atrás de fina, você fica toda hora sendo quase derrubado pelos caminhões. Às vezes tem dois ou três palmos de acostamento, mas tem muitos caminhões indo e voltando, não tem nem para onde sair. Não diria para evitar o sudeste, mas não faço questão de voltar a pedalar lá. 

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