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Henrique Avancini: a mistura exata entre agressividade e calma

Atualizado em 27 de setembro de 2018
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O sucesso já não é novidade para o ciclista Henrique Avancini, de 29 anos. O carioca de Petrópolis é patrocinado por uma das maiores marcas do esporte de ação internacional, piloto de uma grande fábrica de bicicletas norte-americana e vem colecionando títulos e qualificações impressionantes ao longo dos anos de carreira. Coroando a ótima fase que começou no ano passado, tornou-se campeão mundial de mountain bike maratona.

Avancini venceu a duríssima prova, de 102 km, em 5h08min no último dia 14 em Auronzo di Cadore, nas Dolomitas Italianas. Uma semana antes, garantiu o quarto lugar no mundial de MTB cross-country olímpico em Lenzerheide, na Suíça (o suíço Nino Schurter foi o vencedor). Em março deste ano, conquistou um inédito terceiro lugar na Cape Epic, a ultramaratona ciclística mais conhecida do mundo, ao lado do alemão Manuel Fumic, seu companheiro de equipe na Cannondale Factory Racing.

“Este título concretiza a mensagem que eu sempre quis passar: a de que é sempre possível evoluir, crescer. Eu sou um cara que não tem “pedigree de atleta top”, e me tornei campeão mundial”, disse nesta entrevista à VO2, poucos dias depois de receber a camisa de arco-íris, dada ao campeão mundial.

Em competições nacionais, como esperado, Henrique Avancini está no topo. Em abril, foi o vencedor na famosa etapa de Araxá (MG) da Copa Internacional de Mountain Bike. Em julho, venceu o Campeonato Brasileiro, disputado em etapa única em São Paulo.

Henrique Avancini conquistou o Mundial de MTB maratona

Confira a entrevista com Henrique Avancini

VO2Bike: O que significa ser campeão mundial?

Henrique Avancini: Este título concretiza a mensagem que eu sempre quis passar: a de que é sempre possível evoluir, crescer. Eu sou um cara que não tem “pedigree de atleta top”, e me tornei campeão mundial. Foi um caminho construído passo a passo ao longo dos anos. Saí do top 100 para o top 50, depois top 30, top 15, top 5 e cheguei ao título mundial. É a mensagem por trás disso – a de que a dedicação traz resultados – que tem maior valor e é minha maior realização até o momento. Ainda não consegui digerir o que conquistei. Chegar a um título mundial sempre foi um objetivo, mas quando você realiza isso mesmo é chocante. Ainda estou tentando processar isso dentro de mim. É um momento de muita satisfação, por estar vivendo aquilo que considero ser meu propósito dentro do esporte, que é inspirar outras pessoas.

VO2: Como você obtém sucesso em duas categorias distintas de ciclismo?

Avancini: O MTB exige que o atleta desenvolva uma grande capacidade de adaptação, é um esporte com uma variação absurda, já que não existem duas pistas iguais. O tipo de esforço que você precisa fazer é muito variado, então temos que variar também nossa preparação. É normal fazer treinamentos com características de maratona para competir no cross-country olímpico, por exemplo. Por isso é viável ter boa performance independentemente do formato da prova. Mas é claro que uma performance combiferranada tão boa assim foi quase uma surpresa, bastante agradável (risos).

VO2: Que estratégia usou para vencer a maratona?

Avancini: Sabíamos que havia um ponto chave na prova: a subida mais longa, na direção do Refugio Tretini de Oronzo, que é o ponto mais alto da montanha, a 2.400 metros de altitude. Era o pior trecho para mim, uma subida bem constante e com uma boa parte em asfalto. Eu escolhi competir com uma bike full suspension (uma Cannondale Scalpel), o que adiciona um quilo ao meu peso de equipamento, e me causou uma perda grande nessa seção. Sabia que se chegasse no topo com uma diferença máxima de um minuto para os líderes, eu ainda estaria no jogo (faltariam cerca de 45 km para o final). A parte final da prova seria mais fácil de gerenciar, é mais meu estilo.

Trabalhei para quebrar o ritmo dos atletas que iriam melhor na subida, que são geralmente mais leves, menos musculosos e menos agressivos, e que mantêm um ritmo muito consistente. Usei o começo da prova de maneira mais agressiva, para diminuir um pouco o ritmo deles nessa parte do percurso. Acabei chegando ao topo em uma situação muito agradável. Começamos a subir em um grupo de 8 atletas, eu consegui responder com os dois que atacaram, e “sobrei” deles a 1.5 km do cume.

VO2: Em que momento percebeu que poderia vencer?

Avancini: Quando virei o cume, tinha um gap de 28s, então sabia que estava em condições de brigar pelo título. Na parte final da prova, eu jogaria as minhas melhores cartas. O trecho final da prova foi onde consegui desgastar os outros pilotos ainda mais, e construí uma mensagem de que eu era um atleta muito explosivo. Andei com o ritmo muito quebrado, para dar a impressão de que eu levaria a melhor caso a prova tivesse final em sprint – foi uma pequena vantagem psicológica que eu tentei criar.

VO2: Você não parou nenhuma vez, em cinco horas de prova?

Avancini: Em provas por etapas, como a Cape Epic ou a Brasil Ride, temos que parar para trocar as garrafas, então fazemos paradas de cinco ou dez segundos. Na maratona é diferente. Existem zonas de abastecimento, com staff para te dar novas garrafas, etc. Se você para, desperdiça um tempo que vale ouro. Então o que você precisar fazer, ir ao banheiro, comer, tudo, você faz em cima da bicicleta (risos).

VO2: Você costuma dizer que trabalha mais do que os outros atletas. Por quê?

Avancini: Aos 20 anos de idade me mudei para a Itália para tentar ser ciclista profissional, e foi um momento muito difícil para mim. Viver a tentativa de obter sucesso em um meio tão concorrido foi uma mudança muito pesada. Lembro que um gerente de equipe italiano virou para mim às vésperas de uma competição importante e falou “Não vou te mandar a passagem porque acho que você não precisa ir. Você deveria repensar sua carreira, não acho que você tenha o que é preciso para competir como profissional na Europa”.

Quando ele me falou isso, aceitei de uma maneira boa. Refleti e pensei “Realmente, acho que não tenho o que esses caras têm, mas vou ter o que eles não têm”. A partir deste momento, comecei a largar todas as provas tendo a certeza de que tinha me preparado mais e melhor do que todos os outros atletas. Passei a treinar muito mais do que o “normal”, a fazer muito mais sessões, e de maior intensidade. Minha ambição e a certeza de estar trabalhando mais foram meus pontos fortes. E chegou um momento em que acho que fechei este gap através do trabalho duro. Ainda não me vejo como um cara talentoso, mas mesmo assim hoje sou campeão mundial.

VO2: Como você vê sua participação nos Jogos do Rio em 2016? Como será seu caminho até a Olimpíada de Tóquio, em 2020?

Avancini: Os Jogos do Rio foram uma experiência muito necessária à minha jornada como atleta profissional (Henrique ficou em 23o lugar na prova de MTB XCO). Foi o último ano de um ciclo onde eu cresci muito, mas tive uma lesão na coluna que durou a temporada inteira de 2016 – e uma lesão subsequente durante a prova dos Jogos Olímpicos. A partir da lesão, reavaliei muitas coisas em minha carreira e no meu jeito de trabalhar. Esta frustração tão grande em um momento que era tão importante pra mim me ajudou a amadurecer e começar a entender minha missão. E acho que isso foi até melhor do que ter tido um bom resultado no Rio. Costumo dizer que “o Rio foi a melhor pior coisa que já me aconteceu”. Acho que foi a única maneira de me pôr no caminho que estou hoje.

VO2: Como o ano de 2018 está se encaixando na rota rumo a Tóquio?

Avancini: Neste ano minha meta era de construir uma consistência de resultados, mais do que buscar grandes performances isoladas. Queria estar mais vezes no pelotão de frente – pois quem está na frente hoje é quem estará na frente em 2020, e eu preciso conhecer meus adversarios. Então estive mais preocupado em coletar informações sobre eles e ganhar vivência no pelotão do que em buscar resultados, mas acabamos tendo performances ainda melhores do que o esperado.

Fiquei em quarto no mundial de cross-country olímpico, vencendo uma etapa de short track, pegando cinco pódios e terminando como o segundo colocado no ranking da UCI. Agora fui campeão mundial de MTB maratona. O saldo foi muito mais positivo do que eu esperava. Mas acredito que a maior realização do ano foi tirar muitas lições boas do que passamos. Rumo a Tóquio, preciso absorver o que vivi nas pistas e na preparação, e aumentar minha eficiência competitiva no ano que vem.

VO2: Você também trabalha seu psicológico para competir? Como enxerga esta parte da preparação?

Avancini: Se sua cabeça nao estiver no lugar certo, você não realiza nada – você pode ser o cara mais forte do mundo e não vai a lugar algum. Comecei um trabalho com a Alessandra Dutra em 2015 através do Comitê Olímpico Brasileiro, e para mim foi um divisor de águas. Acredito que meu preparo mental seja hoje minha maior força, minha maior vantagem, e a ferramenta em que ainda tenho mais margem de crescimento.

O trabalho psicológico tem um valor absurdo, não só para o título mundial mas para o meu crescimento e amadurecimento. É um trabalho primordial e que está muito longe de acabar. Me sinto muito motivado ao enxergar este horizonte ainda bem distante.

VO2: Como preparar a parte mental para uma maratona?

Avancini: A grande dificuldade da maratona de MTB é ser uma prova de endurance disputada de forma intensa. Mais do que um paralelo com uma maratona a pé, digo que é como se fosse uma forma de luta. Tenho que ser um atleta agressivo, e ao mesmo tempo manter a lucidez e a calma. Achar este balanço e ser as duas coisas ao mesmo tempo é um desafio, uma equação difícil de resolver, mas me sinto cada vez mais capaz de pôr isso em prática.

Vo2: Você se sente pressionado como ídolo do MTB?

Avancini: Minha missão não é apenas inspirar pessoas a pedalar, por eu ser uma referência na modalidade. O que eu tento passar através do esporte é a mensagem de que é possível crescer e alcançar sucesso, como atleta ou na vida, trabalhando duro e se dedicando aos processos que a vida propõe. O título mundial é o carimbo desta minha teoria. Já era possível enxergar isso antes do título, mas quando se vai do “nada” ao topo, a teoria se torna incontestável.

Não penso em mim como um ídolo, me vejo como um cara normal que trabalhou, acreditou no processo e avançou etapa a etapa até chegar ao topo do caminho. Ter me tornado campeão mundial é o símbolo máximo que posso fornecer como inspiração a outras pessoas para que alcancem seus objetivos, então nunca me senti mais leve do que me sinto agora.

VO2: Você se diverte pedalando?

Avancini: Nem sempre. Quase sempre sinto prazer, mas há uma diferença entre os dois. Levo a competição muito a sério, pois o que há por trás da competição é muito sério, não é uma brincadeira. Em muitos momentos durante a preparação, no pré-prova e na competição, me divirto muito. Mas realizar coisas de uma forma séria às vezes me traz mais prazer do que um momento de descontração. Às vezes a diversão está junto, às vezes não, mas não existe essa necessidade. Tem provas que não são nem um pouco divertidas, em que eu sofro do começo ao fim. Mas ainda assim tenho prazer no processo, no que eu estou entregando à competição e no que vou tirar daquilo ali.