Ricardo SoaresFoto: Ricardo Soares

Arcah: largada para uma vida nova com a corrida

Atualizado em 15 de agosto de 2018
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A corrida pode ser uma ferramenta de transformação social. E é nisso que o projeto Arcah, em Araçariguama, na região metropolitana de Sorocaba, acredita. A iniciativa busca reabilitar pessoas em situação de rua e utiliza a o esporte como parte essencial do tratamento.

O objetivo é dar a essas pessoas uma chance digna de recomeço, deixando para trás a realidade difícil, solitária e com muitos percalços, entre eles a dependência química de drogas e álcool.

Arcah: um por todos

Em 2013, um grupo de empresários, amigos e conhecidos se uniu para tentar entender a situação de quem vive nas ruas. “Que problema é esse? Quem são essas pessoas, de onde elas vieram e, principalmente, por que isso acontece? Precisamos estudar isso”, relembra Rodrigo Flaire, diretor de operações da Arcah.

Flaire procurou a resposta entre projetos, exemplos de comunidades terapêuticas existentes e nos livros.

Encontrou a história do norte-americano Carl Hart, cientista social, ativista e educador. Criado na periferia de Miami, Hart usou drogas e cometeu delitos durante sua juventude.

“Um dos estudos de Hart quis provar que não importa a situação, o ser humano sempre irá optar pelo que é melhor para ele. Desde que li essa frase, fiquei com essa pulga atrás da orelha: o que aconteceu na vida dessas pessoas para que lugares como a Cracolândia, as ruas ou o albergue sejam as melhores opções? Isso me intrigou. Assim nasceu a Arcah.”, explica.

Depois de uma imersão na Comunidade San Patrignano, na Itália, Flaire regressou ao Brasil e apostou as fichas em um modelo de reabilitação sem grades, remédios e isolamento social.

No lugar, trabalho, ensino, alimentação, moradia e corrida. A atividade física é um alicerce importante no processo.

“Ela requer uma disciplina que, para a maioria deles, quase nunca foi exercida. Aprender a correr exige tempo, rotina e dedicação. Tenho visto nítidas mudanças naqueles que se dedicam, como a autoestima aflorando, autoconfiança mais presente e a interação mais respeitosa.”, comemora Leandro Pessoa, da LPO Assessoria Esportiva, responsável pelos treinos da Arcah.

Coordenador do projeto Arcah

Rodrigo Flaire, diretor de operações da Arcah, que também mora com os educandos na fazenda – Foto: Ricardo Soares

Refazendo os passos

Além de reaprenderem a viver em um ambiente com regras e convivência “familiar”, os educandos, todos homens, aprendem a cuidar da terra, a meditar e têm tratamento com psicólogos, nutricionistas e outros médicos na fazenda do projeto.

A meta é desafiadora: vencer a dependência química, aprender um ofício e morar durante três anos no local. A principal motivação é fazer com que eles adquiram responsabilidade pela própria vida, aceitem-se, perdoem a si mesmos pelas agruras do passado e encontrem no esporte um aliado contra recaídas.

Na primeira visita da O2, o local abrigava 12 moradores; na última, nove. Alguns desistem no meio do caminho e, como não estão confinados, são livres para ir embora quando quiserem.

Apesar do livre-arbítrio, existem deveres no dia a dia: cuidar do jardim, mexer com a terra, rastelar o chão, faxinar os quartos, preparar a comida, cuidar da horta, aprender a fazer pequenos reparos e cozinhar são algumas das atividades que fazem parte da rotina da Arcah.

Novo sentido para viver

Claro que o treinamento tem a sua recompensa — os educandos participaram da etapa Rock Nitro da Night Run, em agosto. Cruzar a linha de chegada de uma corrida de verdade é o símbolo de vitória de uma nova fase.

Para Leandro Pessoa, treinador dos educandos da Arcah, o maior aprendizado tem sido respeitar o limite do outro. 

“Com histórias tão difíceis e peculiares, de dano emocional, de falta de afeto… eles têm excesso de falta, sabe? Ganhar a confiança deles é um grande desafio. É difícil ultrapassar essa barreira que a rua construiu. Agora que tenho mais acesso, cada treino é uma vitória.”, comenta.

Se vai dar certo no fim? Não dá para saber. Tratar a dependência química é mais árduo do que se pensa, e existe muita polêmica sobre os tipos de tratamentos para dependentes. O que se sabe é que a taxa de recuperação é baixa por causa do retorno ao vício. Poucos saem da areia movediça sem olhar para trás.

“É uma realidade difícil, mas, se um dos educandos da Arcah conseguir levar a corrida para a vida e ter essa vida nova que todos ali estão aprendendo, já terá valido a pena”, torce o treino.

 

Vidas mudadas pela corrida

Edson da Silva Lima, 33 anos

“Sem dúvida o esporte é essencial pra gente hoje. Mudou muito. Criamos expectativa, causa uma euforia, sabe? É gostosa essa sensação, a gente não tinha mais isso. Tem dias que estamos desanimados, mas quando corremos já ficamos felizes de novo. Aquele suor que sai do corpo é gostoso. Vejo meus sonhos chegando mais perto de mim, as vontades que eu já tinha esquecido.”

Michael Silva Santos, 32 anos

“Fiquei alguns anos consumindo drogas e álcool compulsivamente. Até hoje sinto coisas, mesmo há dez meses em tratamento, é como se nada tivesse melhorado ainda dentro de mim. Algumas marcas não saem. Mas o esporte tem sido essa válvula de escape para o desânimo e a fraqueza não me pegarem. Dá vontade de desistir se o esporte não tá aí. Cada quilômetro corrido é uma superação. Parei de fumar porque fiquei motivado aqui. Agora estamos correndo 5 km, está sendo muito especial.”

Rubem Pereira da Silva, 41 anos

“Eu não gostava de correr. Nunca queria, acabei indo depois que o Leandro (professor) ficou me incentivando. Fui a primeira vez, a segunda… aí um dia corri 5 km sem parar. A corrida vai ser minha vitória de vida. Fico contente depois que eu corro, me sinto um atleta de verdade. Uma coisa que eu nunca imaginava fazer”