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Juan Dual: o corredor sem órgãos digestivos que não teme a morte

Atualizado em 28 de novembro de 2017
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No meio da montanha, Juan Dual sorri. Desfruta de cada passo, cada segundo. Tenta capturar as imagens e sons que os rodeiam, e também as emoções que tudo isso lhe provoca. São horas de solidão, e muitas coisas acontecem em seu interior: “Você ri, chora, lembra-se de pessoas, esquece de tudo, canta, fala sozinho, fala com seu corpo, com as árvores, a montanha, a mochila… A mente se conecta com coisas que normalmente não conecta. Na montanha você está consigo e se escuta muito. Conhece seus demônios e suas virtudes”, ele resume.

Dual decidiu que viveria todo instante ao máximo depois de ficar duas vezes à beira da morte por conta de um inimigo que o acompanha desde o nascimento: ele sofre de um problema genético chamado polipose familiar múltipla, doença que produz pólipos nos órgãos do sistema digestivo e causou a morte de sua avó e dois tios.

Seu pai e irmão também carregam o gene indesejável, mas assim como Juan, esquivaram da morte ao dispensar alguns órgãos. Juan não tem cólon, reto, vesícula biliar nem estômago, e lida com isso da melhor maneira possível: “Graças a não ter essas peças estou vivendo uma vida incrível, que muita gente com todas as suas peças se encantaria em viver. Tenho muito vazio por dentro, e assim tenho mais espaço para encher-me de experiências”.

Juan Dual, desprendendo-se de algumas partes “vitais”

Aos 13 anos seus primeiros pólipos foram encontrados e assim soube que em algum momento da sua adolescência seria operado. Aos 19, se foram o cólon e o reto. Ele levou a situação sempre com normalidade, sem maiores angústias. Via seu pai nas mesmas condições mantendo uma vida normal, trabalhando e praticando trekking.

Aos 27, deu adeus à vesícula e ao estômago, e caiu a ficha de que a partir desse momento seria mais difícil se adaptar a algumas questões: “Foi uma mudança complicada, tive que aprender a comer, provar qual comida me caía bem e qual era pesada. Às vezes, comia um prato de macarrão com atum e descia bem; mas no dia seguinte comia exatamente a mesma coisa e descia muito pesado”, ele disse.

“Comecei a ter medo de comida e perdi muito peso. Em três meses passei de 106kg a ter apenas 57kg. Perdi praticamente cinquenta por cento da massa muscular, não tinha energia, não conseguia seguir o ritmo dos meus amigos e isso foi um golpe muito duro”, completou.

Uma vida ativa, com saídas ao cinema, teatro e exposições, e a prática de alguns esportes, deu início a uma realidade completamente diferente: Juan Dual não podia, a princípio, caminhar por mais de cinco minutos sem ficar esgotado e com necessidade urgente de sentar-se e descansar.

 

 

Assimilando ausências, correndo entre as nuvens

Uma psicóloga o ajudou a compreender que essa deficiência extrema seria passageira, até que seu organismo assimilasse as novas ausências em seu interior. Aos poucos, aprendeu a comer os alimentos corretos em quantidades adequadas: pequenas, mas muitas vezes durante o dia. “Estou constantemente comendo. Não posso comer um sanduíche inteiro de uma vez. Dou duas mordidas, guardo, e dou mais duas depois de um tempo”, explica Juan Dual.

Um par de tênis jogado em sua sala de estar foi o sinal de para onde devia dirigir suas energias: colocou os calçados nos pés e saiu para correr, da maneira mais digna possível, uns três quilômetros, alternando caminhadas. No dia seguinte, estendeu a distância e os trechos sem caminhar. Depois de duas semanas, corria quase todos os dias sem interrupções.

Inquieto, cansou das ruas e mirou nas montanhas, seu novo refúgio. Nunca se arrependeu: “A montanha te põe em seu lugar, faz você sentir o que é. Ao mesmo tempo, ela te oferece opções e permite visualizar como chegar às coisas e te dá ferramentas para a vida diária”.

Juan Dual e a falta de dinheiro

Atualmente, Juan se dedica a viajar pelo mundo participando de corridas, e recebe doações para realizar seus objetivos por meio de seu site, Runnife. Seu financiamento, todavia, é muito precário, e mais de uma vez ficou sem dinheiro muito longe de sua casa em Valência, na Espanha (para onde conseguiu voltar depois de sua última excursão na América do Sul graças a alguns amigos que arrecadaram fundos vendendo empanadas e outras contribuições).

Há pouco, isso aconteceu em Cafayate, na província de Salta, mas ele não se preocupa: “Fiquei perto da morte duas vezes, o dinheiro não é algo que me importo. Se fico sem dinheiro, ficarei sem dinheiro. O aspecto financeiro não deveria limitar nenhum tipo de fluxo de energia”.

Ainda que termine cada corrida exausto, ao ponto de improvisar camas a 15 metros de cada chegada e tirar cochilos para se recuperar antes de continuar com o dia, ele não sente medo de ser incapaz de completar uma prova.

“O normal seria que eu nem tivesse começado a corrida. É uma m… ter que se retirar, porque quero acabar cada prova, mas não é nenhuma derrota. Não me representa nenhum tipo de problema, para mim a vitória é o feito de estar na linha de chegada e disposto a acabar a corrida. Medo não, mas tenho muita curiosidade de saber como vou me sentir do outro lado da linha. Quando se acaba uma corrida, e ainda mais nas minhas condições, a pessoa muda: aprende-se muito de si mesmo”.

– Ter ficado perto de morrer duas vezes faz com que você sinta que está fazendo hora extra?

“Cada dia para mim é um presente, uma maravilha. As pessoas que conheço a cada dia são incríveis. Quando tinha 19 anos, na operação de cólon e reto, quase não saio da sala de cirurgia; na do estômago, o mesmo, mas dessa vez no pós-cirúrgico. Se já tinha a cabeça bem aberta, isso terminou de abri-la.

Não posso viver a vida que as pessoas querem viver, preciso viver minha própria existência. Você se dá conta de que temos apenas uma oportunidade para fazer as coisas.

Quando as pessoas dizem ‘tranquilo, há tempo’, é uma mentira. Não há tempo, o tempo está se consumindo. Agora mesmo estamos conversando e nosso tempo está se consumindo. Graças ao que passei, às cirurgias, às corridas, hoje posso agir como ajo. Será melhor ou pior, mas estou aqui agindo. Não tenho ideia do que vai acontecer amanhã, não conto com isso. Vivo agora.

Publicado originalmente em Atletas.info