Jonah Kipkemoi e Adnan Almousa: dois atletas que superam limites

Atualizado em 22 de junho de 2017
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Para a nomenclatura do esporte, em uma definição-rótulo que sugere incapacidade e limitações severas, eles são corredores considerados deficientes. A beleza dos limites humanos, porém, é que eles podem ser desafiados e superados. O queniano Jonah Kipkemoi Chesum, 27 anos, e o jovem refugiado sírio Adnan Almousa, 19, são exemplos de como as palavras e suas designações podem fugir da verdade quando há coragem e muita luta para seguir os sonhos. Os sonhos, imensos, que eles realizaram na mesma prova, a Maratona de Barcelona deste ano, em março. 

Difícil mensurar qual a façanha maior. Para a história tanto do esporte como do paradesporto, Jonah será sempre lembrado por sua performance nas ruas, avenidas à beira-mar ou colinas quentes e úmidas da capital da Catalunha. O queniano, natural de Itén, no mítico vale de Rift, berço de tantos campeões das provas de fundo do atletismo, simplesmente mudaria a história da maratona ao ousar brigar pela vitória contra corredores sem deficiência. 

Já o cadeirante sírio Adnan enfrentou uma complexa jornada para sair do Líbano – onde é refugiado de guerra – até Barcelona. A viagem só foi possível graças à corrente de solidariedade despertada quando sua história foi revelada em entrevista a uma rádio espanhola, meses antes. Apenas um corredor amador, Adnan é todavia um ultramaratonista da vida: na sua Síria natal, marcada pela guerra civil, um tiro de um franco-atirador lhe tirou o movimento das pernas, mas não do coração.

O coelho que é leão
A má-formação de nascença do antebraço e mão direitos, agravados por um acidente de queimadura na infância, colocou uma barreira enorme entre a condição física de Jonah Kipkemoi e a das inúmeras lendas olímpicas de seu país. Até poucos anos atrás ele era um desconhecido corredor paralímpico da classe T46 (amputados em parte dos membros superiores), finalista sem brilho de duas finais na Paralimpíada de Londres 2012 (oitavo colocado nos 1.500 metros e sexto nos 800 metros). Reclassificado para a Rio 2016 como T47 (amputado superior que só pode encarar provas de velocidade e salto em distância), ele desistiu da Paralimpíada carioca para se dedicar às corridas de rua junto dos atletas “normais”. 

Jonah Kipkemoi mergulha no universo das provas de 10 km e meias-maratonas com muita fome. Coleciona vitórias e ótimas marcas a partir de 2015, como a de 1h02min48s que lhe dá o título na meia de Cardiff, País de Gales. Por isso é escolhido, aos 27 anos, como um dos coelhos (corredores que impõem um ritmo muito forte na prova, para puxar os favoritos) da Maratona de Barcelona, disputada em abril passado.

O queniano enfrenta a história e sua condição de paratleta em uma prova especial, a maratona comemorativa dos 25 anos da Olimpíada de Barcelona 1992, uma das edições em que os Jogos Olímpicos foram realmente uma celebração de esporte e humanidade, fazendo jus ao lema surgido naqueles Jogos, “Amigos para siempre”. Entre 20 mil competidores de 132 países, desde a largada ele voa baixo, honrando o nome que traz às costas: não o seu, mas a palavra inglesa pacer, sinônimo de puxador de ritmo ou coelho.

A função de coelho garante ao queniano € 3 mil a ser pagos pela organização da prova. Os euros com que ele concretizará o sonho de comprar uma vaca para alimentar melhor seu filho de 6 meses.

É este homem simples, que corre para alimentar e cuidar do seu filho, que voa concentrado talvez sem ver monumentos belos e espetaculares do percurso, como a Sagrada Família, a Torre Agbar, a ampla avenida Paseo de Gràcia, o Arc de Triomf, a orla marinha, o Camp Nou, a ponte de Santiago Calatrava etc.

Nos primeiros 10 km, Jonah Kipkemoi e outros dois coelhos quenianos tocam um ritmo vigoroso. Correm sem se poupar, porque esta é a sua missão: forçar demais e abandonar. Mas há algo especial em seu corpo e espírito hoje, algo que um paratleta talvez traga ainda mais dentro de si.

 

 

O menino fugiu para renascer
Enquanto Jonah Kipkemoi avança firme defendendo seu cachê e valor como pai, bem atrás, na multidão de anônimos está outro lutador, um guerreiro da sobrevivência. O jovem sírio Adnan Almousa, 19 anos, faz também sua primeira maratona, como o queniano, mas em uma cadeira de rodas. Corredores voluntários e seu pai o ajudam durante a prova, na verdade uma ultramaratona iniciada anos antes.

Cinco anos atrás ele é apenas um menino sírio tentando driblar a loucura da guerra para buscar pão na padaria. Ao atravessar uma ponte perigosa, o tiro de um franco-atirador atinge suas costas. Tem só 14 anos e seu destino passa a ser a cadeira de rodas na cidade de Homs, uma das mais violentas zonas de conflito da guerra civil em seu país.

O tiro e a guerra poderiam determinar mais um fim comum e cruel para um garoto sírio. Adnan e sua família conseguiriam,
porém, fugir para o vizinho Líbano, o país do mundo que disparado mais acolhe as vítimas dessa guerra. Em Akar, junto de seus pais e seis irmãos, tornam-se refugiados e hoje, aos 19 anos, ele estuda para seu grande sonho, tornar-se engenheiro eletrônico.

Antes, quando a violência quase mata seu futuro naquela ponte, os cuidados de uma ONG e o esporte salvam sua vida. Primeiro vem a ajuda da Inara (International Network for Aid, Relief, and Assistance) – entidade criada em Beirute, Líbano, por Arwa Damon, jornalista americana de origem síria –, que proporciona cuidados médicos para crianças feridas em áreas de conflito. Depois ele começa a correr e a jogar basquete. “Fazer esporte em uma cadeira de rodas é muito duro, mas pelo menos me torna mais positivo na vida e me protege de ficar deprimido”.

Toda essa força vem da infância e de seu povo. “As crianças têm uma resiliência intrínseca, um otimismo muito forte que as faz olhar para a frente”, afirma Ghassan Soleiman, médico cofundador da Inara. E Adnan destaca que os “sírios têm qualidades incríveis, como a paciência e a força para encarar a guerra. Temos a vontade de conseguir o que queremos, não importando as circunstâncias, porque temos muita fé em Deus”.

Outra atividade vital para Adnan é fotografar: “As fotos que mais me agradam são as de paisagens. Elas ampliam o horizonte, não nos colocam limites, nos dão espaço para continuar.” Sinônimas em seu coração das paisagens que permitem olhar longe, respirar e sonhar, as corridas são suas fotografias em movimento.

Momentos decisivos
Jonah também enfrentou grandes desafios. “O pior momento veio depois de completar meus estudos na escola. Eu não tinha dinheiro e a vida não fazia sentido. Eu orava pedindo uma direção para Deus.”

De volta à Maratona de Barcelona, enquanto Adnan avança maravilhado pela beleza de uma cidade que é um moderno museu e polo cultural a céu aberto, Jonah Kipkemoi segue fazendo seu papel, liderando a prova junto de dois compatriotas, com marcas infernais. O objetivo é ajudar o favorito, o etíope Sisay Jisa Mekonnen, a bater o recorde da prova (2h07min30s). O trio de quenianos honra a missão, cravando 1h02min48s na metade da prova, 11 segundos mais rápidos que a melhor marca nos 21 km na história da prova.

Perto dos 30 km, o favorito Mekonne fica para trás e os coelhos isolam-se na ponta. Mesmo correndo com uma intensidade despendida para não acabar a prova, eles resistem bem e nos três quilômetros finais, é justo o único paratleta do trio, Jonah Kipkemoi, que dispara. “Eu me senti bem, senti uma energia extra e acelerei fundo. Não imaginava que poderia liderar e foi então que descobri que discapacidade não é falta de habilidade.”

Jonah vence a prova com 2h08min57s para a surpresa do público, mídia e especialistas. Torna-se o primeiro coelho a ganhar
a Maratona de Barcelona. Mais que isso, é o primeiro paratleta a vencer não só essa prova, mas qualquer maratona do planeta. E seu tempo seria um recorde paraolímpico estrondoso se não o tivessem reclassificado de categoria, quase 20 segundos mais rápido que a marca do espanhol de origem marroquina, Abderraman Ait Kammouch, de 2h26min54s.

A façanha em Barcelona lhe dá, além dos € 3 mil de seu papel de coelho, mais € 10 mil por vencer a prova sub-2h09min. “Vou comprar uma vaca com a premiação e chamá-la de Barcelona em memória por minha vitória. A vaca vai prover leite para o meu garoto e também para mim, pois como atletas, também precisamos de leite. E o que sobrar de leite, quero vender para comprar outros itens de necessidade básicos”, revela o humilde campeão.

Garra e solidariedade
A viagem de Adnan a Barcelona só foi possível graças a uma longa corrente de solidariedade. Tudo começou com uma entrevista que ele deu no Líbano à correspondente da Catalunya Ràdio y TV3, que comoveu a Espanha. Por isso a prefeitura de Barcelona cuidou de sua viagem e da emissão do passaporte ao sempre complicado visto para um sírio.

Os 42 km da sua estreia Adnan só consegue completar com a ajuda de um time catalão de voluntários, o Corre Amb Mi (Corre Comigo), que se dedica exatamente a correr empurrando os cadeirantes. “Nos emocionou muito sentir que, apesar de tudo que sofreu na Síria, o Adnan mostra ter gana para aproveitar as oportunidades da vida ao máximo. Participar da Maratona de Barcelona foi uma dessas chances que ele soube desfrutar”, afirmou Toni Muñoz, diretor da Corre Amb Mi.

A cadeira de rodas usada pelo sírio foi um exemplo dessa corrente de ajuda: a que Adnan trouxe do Líbano não tinha condições de suportar a prova. Um clube de atletismo de Barcelona lhe emprestou uma especial para correr, de três rodas, mas era muita máquina para os costumes do atleta. Por isso o Instituto Guttman lhe deu outra cadeira, mas ela tremia ao acelerar. Finalmente, conseguiram uma mais adequada, já na partida da maratona.

Quatro horas e meia depois, o sobrevivente e guerreiro do povo hoje mais sofrido e violentado do planeta, Adnan completa a prova. “Quero que o mundo inteiro veja que os seres humanos podem fazer qualquer coisa e que não há diferenças entre pessoas que podem andar e outras em cadeiras de rodas; entre brancos e negros, europeus e árabes, ricos e pobres. As diferenças não importam. O que importa é aquilo em que acreditamos.”

O que importa é ter coragem e uma força de vontade colossal para seguir correndo atrás de sonhos considerados impossíveis para a maioria das pessoas. Não para heróis como Adnan e Jonah Kipkemoi. Heróis que têm no coração, mente e corpo a palavra-sentimento de aço e paixão com que Jonah Kipkemoi batizou seu filho. “Bravin (Bravura) é o nome do meu filho. O que eu digo a ele é que quando crescer terá que trabalhar duro para ter uma vida melhor. E que nada vem fácil. Temos que suar muito para conseguir vencer.”

Por Zé Augusto de Aguiar