Mulheres de fibra

Atualizado em 28 de março de 2018
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Animal, Mirela Saturnino, Maria Gabriela Manssur e Maria Aparecida Soares. Fugindo das drogas, de um passado de abusos, da pobreza, da baixa autoestima e de outros dilemas do dia a dia, estas mulheres se apegaram à corrida como um instrumento de salvação para virarem o jogo. E conseguiram. A O2 retratou a valentia, a coragem e a atitude destas corredoras de fibra.

Instinto animal

Ex-moradora de rua, Animal se apaixonou pela corrida assistindo à TV

Ana Luiza Garcez — mais conhecida como Animal — é uma lenda urbana da cidade de São Paulo. Com 42 kg distribuídos em aproximadamente 1,50 metro, esta mulher de 55 anos chama a atenção pelas passadas velozes na pista do Parque Ibirapuera, onde chega a correr 3 horas por dia, e pela sinceridade. Não é exagero dizer que a corrida, esporte que Animal conheceu por volta dos 35 anos, a fez nascer de novo. “Se não fosse a corrida, eu provavelmente estaria morta, usando pedra ou jogada por aí”, diz.

Abandonada pela mãe em uma caixa de sapatos, foi criada em um orfanato do governo, onde permaneceu até os 18 anos. De lá saiu para trabalhar como empregada doméstica. Sem receber salários, quis dar uma lição na patroa: “Roubei tudo que eu podia”. O delito a jogou na dura realidade das ruas do centro de São Paulo por quase duas décadas. Sua rotina consistia em descansar sobre papelões ou cobertores velhos durante o dia e usar drogas e roubar pela madrugada.

Foi seu espírito selvagem que deu origem ao apelido que carrega até hoje. A agressividade incontrolável — potencializada pela cola, a cocaína e a heroína que consumia em doses cavalares —, a forma destemida de intimidar as pessoas que saqueava e a influência que exercia sobre outros moradores de rua transformaram Ana Luiza em Animal. “Eu não tenho medo de morrer. Se quiser matar, mata”, gritava para os policiais que a abordavam.

Curiosamente, foi sob o efeito de cola de sapateiro que ela descobriu o esporte que transformaria seu destino. Animal costumava se deitar em frente à calçada do Mappin, tradicional loja de departamentos na Avenida São João, no centro de São Paulo (SP), para assistir aos filmes que passavam nos televisores da vitrine. Um deles, Carruagens de Fogo, foi o divisor de águas. As cenas, embaladas pelo que passaria a ser a música-tema da corrida de São Silvestre, mostravam a preparação da equipe olímpica de atletismo da Grã-Bretanha para os Jogos Olímpicos de 1924, em Paris.

Ana Luiza Garcez – Animal

Encantada, Animal descobria ali, na calçada do Mappin, uma nova razão para viver — e acreditava ter vantagem para alcançar sucesso no esporte. “Se eu corro da polícia, também posso correr na rua”, dizia a outros moradores de rua.

Sensibilizado com a história de Animal, Fausto Camunha, então secretário de esportes de São Paulo, a inseriu em um programa de incentivo ao esporte, permitindo que ela morasse nas dependências do Ginásio do Ibirapuera, seu lar desde então. Toda a energia que a tornou conhecida nas ruas foi transportada para a corrida. Animal acorda às 4h da manhã, faz exercícios funcionais em seu quarto, calça o tênis e, antes de o sol nascer, parte para a pista de corrida do Ibirapuera.

Seu desempenho nas competições a conduziu a mais de dez países, como Estados Unidos, Inglaterra, Cuba, Japão, Chile e Argentina. Para que Animal pudesse viajar para o exterior, Camunha e seus assistentes precisaram fazer uma varredura pelas delegacias paulistanas para limpar os antecedentes criminais da corredora.

Um símbolo das duas fases de sua vida repousa sob a bandeira do Brasil que protege suas centenas de troféus. A reportagem da O2 pergunta a Animal qual daquelas taças é a sua preferida. Com o dedo indicador, ela aponta para uma taça de acabamento simples, mas de mensagem rica: “Primeira colocada da categoria feminina. Droga mata, esporte salva”.

Salva pelo esporte, Animal planeja vida longa na corrida que aprendeu a amar. “Enquanto minhas pernas deixarem, eu vou correr.”

A resiliência de Mirela

Pobreza, um atropelamento, problemas familiares e falta de confiança. Mirela Saturnino superou tudo isso antes de brilhar na corrida. Hoje, é a terceira melhor maratonista do país

O dia 18 de junho de 2017 não sai da memória da pernambucana Mirela Saturnino. Ao completar a Maratona do Rio em 2h39min02s, ela garantiu o segundo lugar da prova e alcançou o melhor resultado de sua carreira, que lhe rendeu o posto de terceira maratonista mais rápida do Brasil. Logo após cruzar a linha de chegada, ajoelhou e agradeceu aos céus pela graça alcançada. Para quem superou tantas dificuldades na vida, tratar aquele momento como uma obra divina não era exagero.

Muito antes de aprender as técnicas de corrida, Mirela já tinha a resiliência como um ponto forte. A resistência que mostra sobre o asfalto nos 42 km vem desde a época em que vendia chicletes nos semáforos do Recife. Uma das vendas, no entanto, não terminou bem. Assim que recebeu o dinheiro, Mirela foi atropelada por uma moto.

O acidente deixou duas cicatrizes em seu corpo — uma delas foi coberta com uma flor em forma de tatuagem. As marcas na pele abalaram a autoestima de Mirela, que viu na corrida uma oportunidade para se sentir mais bonita. “Hoje eu me considero uma pessoa linda, cheia de determinação e garra. Acredito no meu potencial. Foi por meio das minhas dores que cheguei até aqui”, diz.

Criada ao lado de 11 irmãos, Mirela cresceu em uma casa pequena em uma comunidade carente do Recife. Trabalha desde os 4 anos e driblou a falta de comida em casa e os problemas de relacionamento com alguns familiares. O esporte surgiu em sua vida só aos 16 anos. Engana-se quem pensa que sua primeira opção foi a corrida. Ela só não mergulhou de cabeça na natação porque um problema dermatológico nas costas — pano branco — vetou sua presença nas piscinas. “Nada dá certo na minha vida”, pensou.

Mirela Saturnino

Não demorou para que começasse a dar certo. Das piscinas, Mirela foi para as pistas de atletismo. Ouviu de um treinador que tinha talento e decidiu apostar na modalidade. “A dor no corpo que eu sentia nos treinos de corrida me fazia superar o que eu passava. Eu queria lidar com a dor, porque era o que me fazia chegar aonde queria. Eu esquecia das minhas discussões em casa, de que chegaria em casa e não teria comida.”

Mirela precisou conciliar o atletismo com os “bicos” para ganhar dinheiro até os 21 anos. Hoje, aos 27, é atleta da Marinha do Brasil, treina no Rio de Janeiro e tem tratamento de estrela quando volta ao Recife. “As pessoas me recebem como celebridade, como uma pessoa extrovertida. Dizem que minha mãe deve se orgulhar de mim”, conta. “Aquela Mirela mais frágil, que não tinha oportunidades, não existe mais.”

Mirela estabeleceu três metas na corrida: a medalha de ouro nos Jogos Mundiais Militares de Verão, em 2019, na China, e as vitórias na Maratona do Rio e na São Silvestre. Talhada pelas mazelas da vida, a incansável pernambucana confia em seu fôlego para alcançar os objetivos que traçou. “Posso correr o dia todinho. Não me canso de jeito nenhum.”

Passadas para a felicidade

Maria Aparecida Soares abandonou o passado de agressões e criou seis filhos sozinha. Agora, ela só quer saber de correr

Maria Aparecida Santos Soares é o retrato da força da mulher nordestina. Valentia, disposição para trabalhar e amor à terra marcaram a vida da baiana de 64 anos. Com um largo sorriso no rosto e fazendo gesto de “aviãozinho”, ela concluiu a última edição da São Silvestre em 2h17min, prova que a deixou em um estado de “alucinação de alegria”.

Quem vê Cida esbanjando alto-astral por onde passa nem imagina os percalços que teve em seu caminho. Casada desde os 13 anos com um homem que a violentava física e psicologicamente, ela decidiu mudar de vida depois de ouvir o filho mais velho suplicar para que a mãe deixasse o marido. “Não dá mais para a senhora aguentar isso”, disse o garoto ao ver a mãe ser espancada.

Aos 23 anos, Cida reuniu os seis filhos, deixou Itapebi, no sul da Bahia, e foi para bem longe do marido e da vida de abusos. Desembarcou em São Paulo, onde precisou se virar com pouca grana para sustentar as crianças. Com o dinheiro que arrecadava como costureira e faxineira, alugou uma casa de dois cômodos, que serviria de abrigo para sete pessoas.

“A casa tinha uma cozinha e um quarto. Meus seis filhos dormiam enfileiradinhos. Tive que colocar todos eles para trabalhar aos 9, 10 anos”, recorda.

Três décadas de trabalho duro na maior cidade do País deixaram a situação financeira de Cida “melhorzinha”. Já com os filhos criados e independentes, ela decidiu voltar às suas origens. Comprou uma fazenda em Porto Seguro para criar gado e plantar cacau. “Virei peã (risos)”, relata.

Maria Aparecida Soares – Vovó Fitness

Cida tocou as atividades da fazenda até os 60 anos, quando viu que finalmente era hora de descansar e pensar um pouco em si mesma. “E agora? Vou fazer o quê?” foi a pergunta que a perturbou assim que a venda de sua fazenda foi concluída. “Fiquei perdida. Foi aí que encontrei a corrida. Agora é só alegria. Minha vida mudou.”

Com tempo de sobra para finalmente fazer o que bem entender, Cida está em um relacionamento sério com a corrida. Ela é presença garantida nas provas da região de Porto Seguro, onde é facilmente encontrada correndo na orla da terra que marcou o descobrimento do Brasil.

“Eu namoro a corrida, que me dá todo o prazer de que preciso. Me preenche, me satisfaz. Em todas as corridas faço novas amizades. Eu não curto noitada, não bebo nem fumo. A minha festa é a corrida”, diz, com bom humor.

Conhecida por alguns amigos em Porto Seguro como Vovó Fitness, Cida ainda não disputou uma meia-maratona, mas já sonha mais alto, com uma prova de 42 km. Como uma de suas filhas vive na capital francesa, ela pretende unir o útil ao agradável e disputar a Maratona de Paris. Ela aposta em sua “saúde maravilhosa” para, nos próximos anos, cruzar a linha de chegada de uma das provas mais badaladas da Europa.

“Eu não tenho medo de enfrentar maratona, não. Já enfrentei muita coisa pior.”

Nós acreditamos, Cida, nós acreditamos…

Correndo para longe da violência

A promotora de justiça Gabi Manssur aliou seu trabalho à corrida para diminuir casos de violência doméstica

Frear casos de violência contra as mulheres é um dos propósitos da vida de Maria Gabriela Manssur, idealizadora do Movimento Pela Mulher, grupo que reúne mulheres em treinos de corrida em diversas cidades brasileiras. A promotora de justiça do Ministério Público uniu a experiência nos gabinetes ao esporte que aprendeu a amar durante a faculdade por uma nobre causa: a de transformar a vida de mulheres agredidas física e psicologicamente dentro de casa — e que, muitas vezes, sequer se dão conta disso.

Ao notar que os efeitos positivos da corrida transcendiam as questões físicas, Gabi decidiu incentivar outras mulheres a seguirem o mesmo caminho. O que era hobby para aliviar as tensões do dia a dia tornou-se uma espécie de ferramenta de trabalho.

Os treinões do Movimento Pela Mulher vão além da corrida em grupo. Depois do treino, as participantes trocam confidências sobre seus casamentos, o cotidiano de seus lares e as preocupações com os filhos. Essa cumplicidade dá coragem para que algumas delas deem um basta na violência doméstica, denunciem os maridos ou simplesmente rompam seus relacionamentos abusivos. O fato de ser um espaço aberto, sem hipocrisia ou julgamentos — alento que nem sempre encontram no convívio com as amigas —, é um dos grandes trunfos do grupo, segundo a promotora.

Gabi Manssur

“Eu acredito que a corrida é importante para que a mulher tenha força, saiba que pode superar limites, conquistar os seus objetivos e ganhar autonomia para tomar decisões. A cada passo na corrida, a mulher transfere isso para a vida pessoal. Dá uma autoconfiança muito grande. A mulher descobre o poder que tem”, conta Gabi, de 44 anos.

Entre todas as vidas transformadas pelo Movimento Pela Mulher, cujo slogan é “Igualdade, justiça e empoderamento para todas as mulheres”, uma história é guardada com carinho pela promotora. R. S., casada com um advogado e mãe de dois filhos, pertencia ao que Gabi chama de “família Doriana”. O que para muitos parecia o “lar, doce lar” de R. S. era, na verdade, um campo de batalha. Mesmo sem nunca ter sido agredida fisicamente, ela, entre os 25 e 26 anos, vivia sob um regime de controle absoluto. O marido regulava seus horários, seus gastos, sua alimentação e até os absorventes que usava. Além disso, o cônjuge a obrigou a sair do trabalho, falava mal de seus familiares, impedia o convívio com as amigas. O resultado disso foi o que Gabi chama de “encolhimento psicológico”.

Sofrendo com a depressão, R. S. foi acolhida por outras companheiras no Movimento Pela Mulher. Assim que completou os primeiros 5 km de sua vida, decidiu denunciar o marido na delegacia, uma prova de que o esporte imita a vida (e vice-versa). Coletou as provas necessárias e conseguiu no Ministério Público as medidas protetivas de urgência. “Conseguimos fazer justiça para ela”, diz, com orgulho, Gabi.