Numa gelada: atravessando o mundo para correr 21 km no Polo Norte

Atualizado em 20 de setembro de 2021
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Bem-vindo a uma maratona extraordinária em um cenário verdadeiramente magnífico.” Foi exatamente com essas palavras que tive o meu primeiro contato com a Maratona do Círculo Polar Norte, realizada na cidadezinha de Kangerlussuaq, na Groenlândia.

Num primeiro momento me pareceu mais um documentário da Discovery, mais um sonho do que realidade — um lugar tão inóspito, distante e com condições climáticas inimagináveis para brasileiros acostumados a viver no calor dos trópicos. 

Há quase dez anos iniciei a minha jornada nas corridas de rua. Alguns começam por convicção e outros por conveniência. Fui pela segunda opção: sabia que estava levando uma vida sedentária e que precisava fazer alguma coisa para ajudar no meu bem-estar e na manutenção da minha saúde, que, na época, ao longo dos meus 38 anos, já precisava de uma série de ajustes — colesterol alto, pressão arterial desajustada e falta de fôlego.

Por meio de um programa de qualidade de vida da empresa em que trabalhava e a forcinha da minha irmã, que já apreciava o esporte, tive o meu primeiro contato com as passadas. Bastaram as primeiras corridas de 5 km para perceber que algo incrível acontecia aos domingos de manhã e tornava esse evento tão especial. Confesso que levei quase uma hora para correr 5 km, mas terminei a prova feliz e muito impressionada com a incrível atmosfera promovida entre os participantes.

Daí em diante não parei mais. Fui evoluindo nos treinos, me apropriando aos poucos do mundo da corrida com o apoio de novos amigos e da revista O2, que me apresentava esse esporte a cada edição. Conquistei novas distâncias… 10 km, 15 km, 21 km e a tão sonhada maratona, mas de fato me apaixonei pela meia-maratona, que se encaixa no meu estilo de vida e compromissos profissionais. 

Após participar de dezenas de meias-maratonas e centenas de corridas de rua Brasil afora, resolvi atravessar a fronteira brasileira e experimentar uma prova internacional. Foi muito gratificante observar diferentes costumes e sentir o frio na barriga de realizar esse feito longe de casa. Após a experiência na Meia de Nova York, decidi traçar um desafio focando provas internacionais, correr ao menos uma meia-maratona em cada continente, o que me possibilitaria conhecer o mundo literalmente correndo. 

Em cada país, um conjunto de regras, um percurso novo a conhecer que me era apresentado com os traços de sua cultura. Alguns contando as passadas em milhas, outros em quilômetros e muitos sem demarcação nenhuma. Mas todos com uma característica em comum: a tal atmosfera incrível promovida pelos corredores — isso realmente nos une em uma só nação. Deve haver uma espécie de “manual secreto” que somente os corredores conhecem, constituído pela solidariedade, o entusiasmo, a força de vontade e todas aquelas sensações que somente um corredor de rua sabe explicar ao cruzar a linha de chegada.

Foi surpreendente perceber, na inusitada calota polar nas terras da Groenlândia, a mesma atmosfera. Fui a única brasileira na última edição que teve a emoção de cruzar a linha de chegada e provar que nós, brasileiros, temos a garra de encarar o desconhecido e constatar que a determinação e a força de vontade nos movem em qualquer lugar do mundo. 

Foi mais de um ano de planejamento e preparação, em todos os sentidos — emocional, físico e financeiro. Não cansava de ler o regulamento e a lista de pré-requisitos para participar da prova. A cada viagem ou lugar que visitava, tentava completar o meu kit de corrida, já que era muito difícil contar com produtos de inverno vendidos no Brasil e alguns equipamentos exclusivos para corrida em temperaturas extremas, como os indispensáveis spikes (espécie de garras de aço acopladas à sola do tênis para se equilibrar sobre o gelo).

Embora existam lojas especializadas em roupas térmicas, muito pouco se tem para corridas de rua — a maioria dos produtos é voltada para esqui e outros esportes de neve. O comércio eletrônico ajuda muito nesse sentido, mas mesmo assim é preciso contar com a sorte para acertar na escolha do tamanho e na adequação do produto.

Tudo isso tornava o sonho de correr no Círculo Polar um desafio ainda maior. O que eu mais ouvia das pessoas era “como se treina para uma corrida como essa?”. É evidente que não temos frio suficiente para simular esse tipo de condição, mas também é fato que a experiência em dezenas de provas internacionais, os desafios e dificuldades que encontrei em diversos países me deram autoconhecimento para suportar mais uma vez o desconhecido e superar esse desafio. 

Após três voos, cheguei à Groenlândia. A emoção foi enorme e ao mesmo tempo fui assolada por uma grande tristeza ao descer do avião e deparar com uma sensação térmica de 15° C negativos. Mal conseguia respirar de tanto frio! O choque climático sem dúvida foi gritante, mas guardei momentaneamente a tristeza provocada pelo medo de não conseguir correr e fui desbravar o continente gelado.

A organização da corrida fez um trabalho impecável de ambientação e nos apresentou os desafios que estavam por vir. A cada pedaço explorado, a cada orientação dada, o grau de responsabilidade aumentava e a agonia de não saber se seria possível também. Nem é preciso dizer que na véspera da corrida não consegui dormir. Foi uma noite de grande ansiedade, olhando para o meu inusitado kit de corrida sem saber ao certo se seria o suficiente para me manter aquecida e apta do começo ao fim. 

Em uma prova que contava com pouco mais de 130 corredores, pude mais uma vez comprovar a solidariedade e o entusiasmo de cada um. Pessoas dos mais diversos países, alguns mais acostumados com baixas temperaturas, outros nem tanto, mas todos com a mesma missão: vencer o circuito de corrida mais gelado do mundo. Fiz novos amigos — um italiano chamado Pietro realmente fez a diferença para que eu pudesse suportar a calota de gelo, a parte mais pesada da corrida. Sem ele, o sofrimento teria sido muito maior. E um doce casal de alemães, Lissy e Juergen, com quem não tive o prazer de correr junto, mas que me apoiavam com agradáveis palavras de otimismo e real cumplicidade. Sem dúvida nos encontraremos em outras maratonas mundo afora. Sempre acredito que amigos que você faz em condições extremas são amizades para o resto da vida. 

O grande dia chegou. O café da manhã mal descia pela garganta, mas fiz uma força extra porque sabia que toda energia possível era necessária. Partimos rumo à entrada da calota polar ainda no escuro, apesar de não ser tão cedo, mas nessa parte do continente os dias amanhecem tarde e são curtos. O ônibus fez uma parada no meio do caminho — hora de colocar as correntes nos pneus (me senti num dos episódios do programa Estradas Mortais). Dali pra frente, muito gelo e neve para chegar à linha de largada. No meio do caminho você já vai percebendo as placas de contagem dos quilômetros. De dentro do ônibus é quase impossível acreditar que alguém tem a possibilidade de passar correndo por aquela estrada. Até sorri de nervoso quando me dei conta de que na realidade seria eu quem estaria passando por aquele percurso gélido. 

Na linha de largada não há muito tempo para concentração nem alongamentos.  Digamos que foi praticamente descer do ônibus e ser anunciada a largada, qualquer minuto a mais esperando poderia literalmente nos congelar.

Foram quase 2 km de subida pela estrada de cascalho coberta de neve para entrar na parte mais desafiadora e temida da prova, a calota de gelo. Esta é uma rara oportunidade de visitar um dos cantos mais remotos do mundo, quando nos atrevemos a participar de um evento esportivo extremamente desafiador. O gelo sem fim e a tundra ártica deste vasto país formam o pano de fundo da corrida incomum. Passamos pelas monumentais geleiras, as belas paisagens e o deserto ártico — lugar lindo, fascinante e de temperaturas cruéis; a sensação térmica nesse dia beirou 23° C negativos. Desviar da rota e cair numa fenda de gelo era um dos pontos de atenção da prova. A possibilidade remota de deparar com um urso-polar também não estava descartada e a iminência constante da hipotermia faz dessa prova uma das mais desafiadoras e temidas do planeta. 

Pequenos e importantes dilemas eram vencidos a cada quilômetro percorrido, desde dosar o esforço para não saturar as pernas nos momentos de subidas, já que parar não era uma opção; não consumir todo o suplemento energético de uma só vez, pois o corpo consome muito mais calorias em tais condições climáticas e correria o risco de faltar energia para o final; não contar com hidratação fora dos pontos de apoio, mesmo porque, apesar de carregar a própria água, não era possível consumir, pois já estava congelada. E assim foi, um revezamento entre paisagens estarrecedoras de lindas e o medo de travar no meio da prova. 

Após 21 km de muito esforço físico e emocional, cruzar a linha de chegada foi emocionante. Até hoje posso sentir as lágrimas quentes rolando no rosto quase congelado. Confesso que não teria coragem de realizar essa façanha novamente, mas tenho certeza de que foi uma das corridas mais lindas de que já participei e que sempre estará guardada no meu coração e na minha memória.

O sentimento de missão cumprida foi enorme; maior ainda é o empoderamento que se ganha com um desafio como esse, que te coloca à prova o tempo todo, te tira da zona de conforto e te leva além. A experiência proporcionada por essa corrida me tornou ainda mais forte e certa de que estou no caminho correto para encarar os desafios deste mundo em constante disrupção. A Oceania será o próximo roteiro para concluir essa etapa do desafio de correr todos os continentes, que passou a ser um aprendizado de vida. Já participei de meias-maratonas em Nova York, Buenos Aires, Patagônia, Paris, Las Vegas, Toronto, Chicago, África do Sul, Niagara Falls, Deserto do Atacama, Muralha da China e Círculo Polar Norte (Groenlândia). E Brasil, é claro.

Por Gilmara Alvarado da Silva