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Runner's high: a ciência por trás desse fenômeno

Atualizado em 18 de setembro de 2018
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Euforia, alegria, contentamento, uma sensação de leveza misturada com excitação e relaxamento. Já sentiu algo assim depois de correr ou enquanto corria? Alguns dizem que ficam mais relaxados, outros mais agitados — e não tem um timing certo para acontecer, mas essa sensação de felicidade é quase unânime. É o tal runner’s high, ou simplesmente o barato do corredor. Para muitos, é isso que faz a corrida ser tão viciante.

É fato que correr desencadeia um montão de coisas boas aí dentro — e que podem te deixar “alto” de verdade. Uma mistura de hormônios e neurotransmissores que começam a ser liberados, se conectam e bum! De repente começa uma avalanche de sensações que te fazem até esquecer do cansaço e anestesiar a dor.

“Sinto o high depois dos primeiros 3 km. Parece que quando começamos a correr o corpo ainda não está ‘encaixado’ e a mente está barulhenta, mas depois de 15 minutos eu já começo a sentir a tal da endorfina e o corpo fica mais solto. Parece que dá um clique e você se sente solto, livre. Não existe pensamento algum. O high vem quando a corrida encaixa e eu solto o corpo na pista”, descreve o publicitário Pedro Ignácio, de 29 anos.

Para Valéria Duarte Garcia, doutora em neurociências e comportamento pela USP, esse fenômeno está relacionado com nossas adaptações evolutivas ao longo dos anos. “Quando nossos ancestrais precisavam correr por longas distâncias, nosso cérebro fazia uso de artifícios químicos para diminuir a percepção de dor, manter a motivação e permanecer em movimento para buscar o alimento, um dia após o outro. Hoje, no nosso caso, ele faz a gente voltar para o treino”, continua a doutora.

A ciência por trás do runner’s high

Já se sabe bastante sobre as relações profundas entre o cérebro e a corrida: correr pode ser benéfico para aumentar os neurônios ativos, para combater males como a ansiedade e a depressão, para melhorar aspectos cognitivos do envelhecimento (habilidades de movimento e coordenação que perdemos ao longo da vida) e para nos deixar mais felizes também. Mas quanto disso é química e quanto é apenas a mente em ação?

“Por um longo tempo, as pessoas acreditavam que a resposta para o runner’s high era apenas a endorfina — com o exercício de longa duração você libera endorfinas, que têm um efeito semelhante à morfina no corpo e, portanto, podem ser responsáveis pelos sentimentos de bem-estar. Em alguns estudos, porém, quando os efeitos das endorfinas foram bloqueados quimicamente, as pessoas ainda experimentaram este high — de modo que todo o argumento da endorfina foi questionado”, explica Valéria.

O que mais poderia afetar o humor de uma pessoa neste nível afinal? “A secreção de neurotransmissores como a norepinefrina, a dopamina, a anandamida e a serotonina, por exemplo, além da leptina (um hormônio). Eles foram todos estudados para entender o high do corredor, pois tendem a ser liberados e produzidos em maiores concentrações durante o exercício”, continua ela.

Mas todo mundo sente o runner’s high? Como alcançar esse estado de contentamento em todas as corridas? Mais importante, é ele que te faz continuar correndo e querendo sempre mais? “Temos todas as condições fisiológicas para atingir esse barato do corredor porque é algo químico que acontece dentro do organismo. Os neurônios liberam as substâncias, mas existem diferenças individuais quanto aos efeitos das sensações desse fenômeno, o tempo e forma que acontecem. Até os efeitos imperceptíveis atuam no bem-estar do organismo”, explica a doutora Valéria, que também é corredora amadora de longas distâncias.

Um estudo de neuroimagem realizado na Universidade de Bonn (Alemanha) descobriu que exercícios aeróbicos liberam, sim, endorfinas, que desempenham um papel crucial na excitação, emoção e cognição. Mas essas sensações não são causadas apenas por elas. Em um outro estudo, pesquisadores alemães descobriram que o sistema endocanabinoide do cérebro — conjunto de receptores e enzimas que trabalham como sinalizadores entre as células e os processos do corpo e é o mesmo afetado pela maconha — também pode desempenhar um papel na produção desse famoso high da corrida.

Um endocanabinoide solúvel em lipídios chamado anandamida — também encontrado em níveis elevados no sangue das pessoas após a corrida — pode viajar do sangue para o cérebro e ajudar a desencadear essa ‘brisa’.

 

 

Outro estudo feito com estudantes universitários, em pequena escala, comprovou essa ideia. Publicado na revista Cognitive Neuroscience, selecionou atletas universitários bem treinados para correr ou pedalar durante 50 minutos. Depois, mediu os níveis de endocanabinoides no sangue. Além de os níveis estarem elevados, os atletas sentiram efeitos semelhantes aos compostos ativos da maconha: redução do estresse, alívio da dor, sensação de bem-estar e relaxamento. “O high do corredor age nos mesmos receptores do THC, ou seja, seu cérebro produz sua própria maconha”, continua Valéria.

As descobertas indicam que o runner’s high é mais do que um simples aumento de um produto químico no cérebro, é uma dança complexa de compostos psicoativos liberados em resposta a exercícios que aumentam o seu humor, o seu nível de energia, mas também aliviam a ansiedade e fazem você se sentir calmo e relaxado.

Cada um com seu barato

Lembre-se: não existe uma maneira garantida, muito menos única de alcançar esse barato. “Não pense que você está fazendo algo errado apenas porque um parceiro de treino fala que sente isso o tempo todo e você não sente o mesmo. O high ocorre em momentos diferentes para diferentes pessoas. O que funciona um dia também pode não funcionar no próximo”, explica Valéria. A seguir, pedimos para alguns corredores tentarem explicar a sensação.

Runner’s high ou flow?

Ainda que descrevam uma sensação de excitação com a corrida, muitas pessoas confundem o high com outra definição: o flow (fluir), que é quase como uma meditação em movimento. “Os movimentos naturais da corrida, realizados de forma repetitiva, funcionam como um mantra, fazendo com que nosso cérebro oscile de ondas cerebrais com frequências altas para frequências mais baixas. Quanto maior o tempo de exposição (a distância percorrida), mais facilmente o atleta tem a capacidade de desfrutar da meditação ativa e transitar entre frequências cerebrais cada vez mais baixas, atingindo um estado alterado de consciência (flow)”, explica Valéria.

Para sentir o runner’s high basta começar a correr e permanecer em movimento rítmico por algum tempo, pois é algo muito mais fisiológico. Já o flow é outra coisa. É um fenômeno psicológico complexo que precisa de muito trabalho mental e físico também. “Com o treinamento certo eu consigo preparar um atleta para o estado do flow”, explica Valéria, que garante que isso pode até aumentar a performance de atletas que o atingem.

Esse modelo psicológico de flow nada mais é do que aquele momento em que o atleta está totalmente concentrado na atividade física, apresenta alta motivação intrínseca e tem sua consciência inteiramente envolvida pela ação. “Neste momento dizemos que ele atingiu o estado de flow. Essa experiência também tem sido associada a mudanças na atividade cortical, especialmente nas regiões frontais do cérebro, e tem sido relacionada com um aumento da performance cognitiva após o exercício”, complementa Valéria.

“Para a psicologia, o flow é uma reconexão da mente com o corpo por meio do esporte; é um acreditar em si mesmo”, explica Gustavo Monhallem, psicólogo do esporte e coach motivacional do Espaço Lio (SP). “O flow é um ‘ir buscar’ que envolve corpo, mente e espírito. A liberdade que o correr traz, a sensação de ‘eu posso’… e isso pode transformar uma pessoa”, completa.

Quer entrar em flow correndo? “Tente excluir qualquer pensamento ou emoção que não seja relacionado à sua corrida, torne-se parte dela, tente se unir ao ambiente, seja na montanha, na pista, no asfalto”, finaliza Valéria.

 

High

  •  Liberdade atencional

Você apenas está correndo e sentindo o prazer da corrida, não exige atenção nem foco, os neurotransmissores simplesmente agem enquanto você corre.

  • Sem engajamento temporal

É puramente químico! Você começa a correr e os neurotransmissores passam a ser liberados no cérebro, gerando uma sensação de prazer, um “barato”.

  • Abrangente

O high pode começar  assim que você calça o tênis ou no meio da corrida como uma vozinha interior que diz: “Vamos correr, a recompensa está logo ali no fim do treino”

Flow

  • Foco atencional

Você precisa se desligar do ambiente e concentrar-se apenas no movimento, no seu corpo, na respiração. É necessário foco para o flow agir e te ajudar na corrida.

  • Engajamento temporal

É uma prática que leva anos de treinamento mental e psicológico para que você atinja e entenda o que é estar em flow enquanto corre.

  • Específico

Acontece apenas durante a corrida e se define naquela força que você nem sabia que tinha. Um foco energizado e envolvimento pleno com a prática.