Samia Yusuf Omar: a menina que corria para viver

Atualizado em 24 de maio de 2017
Mais em Papo de Corrida

1999. A pequena Samia Yusuf Omar, 8 anos, vive em um dos países mais pobres da África e sua grande paixão é correr pelas terras brancas de Mogadíscio, capital da Somália. Desde pequenina ela já disputa a corrida mais importante de sua cidade, de 7 km, junto do amigo da mesma idade, Ali. Mesmo sendo de clãs rivais em um país que enfrentou inúmeros conflitos tribais, são amigos de fé.

Muito leve e rápida, Samia sempre chega na frente do companheiro, que acaba preferindo se tornar seu treinador. Ainda um garotinho, Ali passa a exigir o máximo de sua pupila e a dupla não para de treinar mesmo quando a Somália entra em mais uma época de terror. Os radicais islâmicos do Al-Shabab tomam o poder e proíbem tudo: a música, o cinema e as roupas coloridas; até a liberdade de ir e vir das mulheres e o banho de mar. Para escapar dessa prisão do corpo e da alma, Samia faz das terras brancas – em que corre só de noite e em caminhos desertos, para driblar os radicais – a sua pista de resistência, uma válvula de escape:

“Quando se corre pela região de Mogadíscio, uma nuvem de poeira fina acompanha seus passos. Ali e eu criávamos dois rastros brancos que, aos poucos, se dissolviam em direção ao céu. Percorríamos sempre o mesmo trajeto – aquelas ruas haviam se tornado nosso campo de treinamento particular”.

 

 

A história real de Samia Yusuf Omar, contada no livro A pequena guerreira (Ed. Record), é narrada por ela mesma em primeira pessoa. A reconstituição magistral é obra do jornalista italiano Giuseppe Catozzella, realizada a partir de relatos de conhecidos e da irmã dela, que conseguiu fugir da Somália numa epopeia até a Finlândia.

Samia e Ali desafiam o toque de recolher e se arriscam nas noites mais escuras para encontrar a beleza e o alento do mar. “As ondas fazem um som maravilhoso que se assemelha a uma voz”, sente a menina. As ondas cantam para Samia percorrer sem medo os caminhos da sua cidade. Mais que isso, ela sonha com um país livre e em paz. A corrida e o carinho de sua família – especialmente do pai e da mãe amorosos e de uma das irmãs, Hodan, que tem o dom do canto tão belo quanto calmante – são o único refúgio contra a intolerância, a sede de poder e a maldade do ser humano.

Além de Ali, seu pai é outro grande incentivador. Se no início ele apenas acha graça da pequenina que sonha em ir para a Olimpíada, logo lhe dá força para enfrentar a guerra e o desprezo com que os radicais tratam as mulheres. Por isso “batiza” sua menina de novo: “Você é uma pequena guerreira que corre pela liberdade. Um dia vai liderar a libertação das mulheres somalis da escravidão à qual os homens as submeteram. Você será a guia delas”.

Antes desse dia sonhado, Samia Yusuf Omar é obrigada a se esconder dentro de uma burca preta, e suar em dobro nos treinos. Mas há um consolo também dobrado. Ela é conduzida pela fé cega mas positiva que Ali tem nas pernas da irmã de vida: “O que ele me pedia era que eu reduzisse ao mínimo o contato dos pés com o chão. Eu tinha que aprender a voar”.

No dia em que ganha um presente especial de seu pai – uma faixa para absorver o suor na região da testa –, Samia Yusuf Omar tem apenas 10 anos, mas a primeira glória está próxima na corrida anual pelos bairros de Mogadíscio:

“Naquele dia, ao disparo do árbitro da prova, deixei todos os pensamentos de lado. Isso nunca tinha acontecido, mas, desde então, não parou mais de acontecer, cada vez que venci. Minha mente conseguiu ficar vazia e se fixar apenas em coisas positivas.

No meu décimo aniversário, percebi que a corrida me libertava dos meus pensamentos. Assim, metro após metro, quilômetro após quilômetro, a menina magricela conseguiu ultrapassar a maior parte do grupo…

Cada vez que corri, a partir daquele dia, devorei metro após metro ruminando essas palavras redentoras de meu pai, as palavras de Yusuf Omar Nu… A libertação do meu povo e das mulheres do Islã.

Minhas pernas avançavam como ondas conduzidas por uma energia que não era minha. O público me puxava como uma locomotiva faz com os vagões, ou como as ondas fazem com o mar.”

“NAQUELE DIA EU GANHEI…”
As passadas finais são dadas no velho e quase em ruínas estádio Konis, “perfurado de balas, com as tribunas em ruínas e remendado com tábuas para reduzir os riscos de queda, a pista crivada por estilhaços de granadas”.

Mais que a paixão dos corredores comuns, Samia Yusuf Omar tem a necessidade de correr e vencer que transforma um corredor em um atleta, e depois em um campeão. E seu amor pela Somália é tão grande que ela não quer ir embora do país como Mo Farah, somali naturalizado britânico bicampeão olímpico dos 5.000 e 10.000 metros. Quer é ser reconhecida defendendo a camiseta azul de seu país, com uma estrela branca no peito.

VIAGENS DE SONHO E DESESPERO
Um dia o amigo Ali vai embora, recrutado pelos radicais, e a amizade será abalada para sempre. Tristezas ainda mais duras e irrecuperáveis atingirão sua família. O único escape, cada vez mais, é correr.

Contra a ditadura e o terror do Al-Shabab, que leva seu amigo-irmão-treinador e destroça seu país e sua família, Samia segue correndo. Torna-se a melhor jovem velocista da Somália e ganha apoio do Comitê Olímpico do país, que lhe garante, pelo menos, a chance de treinar no estádio Konis durante o dia. Faltam ao comitê, porém, recursos para garantir um treinador, médico e alimentação aos seus atletas.

Mesmo com todas essas barreiras, Samia Yusuf Omar é convocada e vai disputar a Olimpíada de Pequim (2008) nos 200 metros, aos 17 anos. Vive dias de sonho, vê mágica em tudo no hotel em que fica, da banheira à alimentação, até vê o ídolo Mo Farah de pertinho.

Os Jogos de Pequim, em 2008, poderiam ser o pequeno grande salto de um conto de fadas ascendente, mas o retorno à Somália lhe dá raros momentos de alegria, como as dezenas de cartas de apoio que recebe de mulheres perseguidas pelo Islã em vários países da região. O terror dos radicais, no entanto, aumenta e ela percebe que é impossível evoluir dessa forma. E “ninguém se interessa pelo atletismo em um país onde tudo são tiros. Os senhores da guerra não tinham motivo para nos apoiar”. Como acontece com tantos povos de países em guerra, de governantes intolerantes ou na miséria, não resta alternativa a não ser fazer “A Viagem”…

“A Viagem é uma coisa que todos nós temos na cabeça desde que nascemos. Cada um tem amigos e parentes que a fizeram ou que, por sua vez, conhecem alguém que a fez. É como uma criatura mitológica que pode levar à salvação ou à morte com a mesma facilidade. Ninguém sabe quanto pode durar. Se a pessoa tiver sorte, dois meses. Se tiver azar, até um ano, ou dois anos”.

Um dia a pequena guerreira parte com a ajuda de uma jornalista dos EUA que se encantara com a história dela. Parte para a Etiópia, um dos centros africanos de grandes corredores, mas não consegue permissão para treinar porque os documentos do Comitê Olímpico da Somália não chegam e ela se torna mais uma ilegal. De novo precisa treinar escondido de noite, para não ser pega pelas autoridades etíopes. Durante o dia, trabalha duro como outras imigrantes para poder sobreviver.

Samia percebe que não há futuro na Etiópia. Procura então os traficantes de pessoas para alcançar o Sudão, depois a Líbia e finalmente a Itália. Samia enfrenta agora uma maratona insana, violenta, mais do que desumana nas mãos dessas pessoas para atravessar desertos. As viagens-fugas são realizadas junto de outras dezenas de pessoas na caçamba e até em contêineres de metal incandescentes de pick-ups ou pequenos caminhões. Ainda há mais provação ao ficar confinada, em pontos de parada, em galpões também degradantes, onde há pouquíssima comida e condições de higiene mínimas.

Muitos morrem pelo caminho ou são feridos seriamente, mas aos 20 anos, ela não desiste, mesmo sendo tratada como um animal: “Quando você entra no deserto, deixa de ser humano”. Vira um mero clandestino fragilíssimo, um animal ligado à vida por um fio cada vez mais fino. Um animal que toma pancadas se não tiver dinheiro – sempre pedido a mais e fora do combinado pelos traficantes –, se não obedecer às ordens, se pedir água, se ousar reclamar de ser espremida com outras dezenas de pessoas vomitando, suando, fedendo, se machucando etc.

Mais do que uma guerreira, Samia Yusuf Omar, consegue alcançar a reta final, a última etapa: a travessia do Mediterrâneo em uma embarcação precária. Indescritível é a visão do mar de novo para quem sobreviveu à travessia do deserto. Mas o mar que Samia sempre amou, talvez só menos que a corrida, não era o mesmo das águas e brisa tranquila da sua Mogadíscio.

Não é possível ultrapassá-lo com passadas. O mar e a vida, em boa parte do mundo de hoje, são implacáveis, sobretudo para um imigrante ilegal. Falta pouco, guerreira, aguente mais um pouco que a mais desumana das maratonas está acabando…

Pena que o mar não tem chão, pena que seus pés velozes não podem caminhar sobre ele. Só resta lutar mais um pouco, no combate sempre brutal, pela vida, de um imigrante clandestino…

Livro: “A pequena guerreira” (Samia Yusuf Omar)

Autor: Giuseppe Catozzella
Páginas: 224
Editora: Record
Preço sugerido: R$ 20