O juiz voador: a história de Iberê Castro Dias

Atualizado em 07 de julho de 2021
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Não bastasse Iberê de Castro Dias correr a maratona para 2h42min – e a meia para 1h17min -, o que já faria dele “nosso herói”, chamou para si a responsabilidade e, do alto de uma confortável posição de juiz de direito do Estado de São Paulo, partiu para idealizar e fazer acontecer uma série de projetos sociais com o objetivo de deixar menos desconfortável a vida das pessoas com maior vulnerabilidade social: crianças e adolescentes carentes. Palmas para ele que ele merece.

Como está sua corrida nesses tempos?

Quando veio a pandemia, parei de treinar de vez. Estou sem correr desde o final de março. Achei que deveria, por conta das condições sanitárias. Pela primeira vez na vida fiquei tanto tempo sem correr. Alugamos uma bicicleta spinning, que eu odiava, e estou aprendendo a gostar. Mas acho que a parada, no final das contas, foi boa. Eu estava precisando desse tempo para me reencontrar na corrida. Sinto-me revigorado e louco para voltar.

E depois da pandemia, você vislumbra alguma mudança no mundo da corrida?

Confesso que não tenho a menor ideia. Acho que as coisas não vão mudar tanto. Claro, haverá uma mudança social ou outra, mas o comportamento das pessoas será basicamente o mesmo. E isso acaba valendo para as corridas de rua também. Ainda não sabemos quando poderemos correr ao lado de milhares de pessoas de novo, mas fatalmente acabará acontecendo quando a vacina chegar. Isso é questão de tempo e vai voltar!

Qual é sua história na corrida?

Sempre pratiquei esportes, jogava basquete no colégio, gostava de futebol. Mas comecei a correr com mais frequência em 2004, depois de um problema de saúde em 2003, trabalhando. Desmaiei sobre o computador e aí fui parar no hospital, UTI. Me reviraram de ponta-cabeça e ninguém encontrou nada. Expliquei ao médico minha rotina: trabalhava, dava aula em faculdade e em cursinho além do trabalho, trabalhava no interior… Ele disse: “Não sei qual é a sua dúvida, você teve uma crise de estresse”. Nessa época eu costumava jogar futebol duas ou três vezes por semana, mas aquele negócio: meia hora de futebol e três horas de churrasco. Não era exatamente um argumento para uma vida saudável.

A partir daí, comecei a correr com mais frequência. Treinava três vezes por semana, num esquema precário, no máximo 40 minutos na esteira da academia. E fui tomando gosto. Lá por 2006, comecei a treinar mais a sério. Pelo menos cinco vezes por semana. E assim foi até 2015, 2016. Sempre treinei sozinho, nunca tive treinador ou fiz parte de assessoria. Sempre fiz minhas próprias planilhas. E essa era grande parte do “barato” do treino. 

Pesquisar sobre fisiologia, entender como o corpo funciona e responde a cada estímulo, a relação entre a questão psicológica e o treino. Meu auge foi entre 2009 e 2014, em treinos e resultados. A partir de 2015, porém, comecei a dar uma declinada, tive algo que imagino ter sido overtraining, sentia muita dor para correr, estava completamente desestimulado. Minha pulsação estava completamente fora do padrão, tinha oscilações cardíacas do nada. Mas só parei de correr por causa da quarentena.

Conte um pouco sobre seu trabalho, Meritíssimo…

Sou juiz estadual desde 2013. Trabalho numa Vara da Infância e da Juventude, em Guarulhos. Lá sou responsável por cuidar dos direitos de crianças e adolescentes. Normalmente, crianças e jovens de periferia, de classes mais baixas. São garotos e garotas que em geral demandam mais atenção dessas varas. Lidamos com tudo que diz respeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente: direito à vida, à educação, questões escolares, vagas em creche, integração de crianças especiais, tratamentos de saúde que o Estado eventualmente se negue a conceder. E adoções, que é a parte do trabalho mais conhecida do público, embora seja pequena. O cotidiano de uma vara da infância é voltado para trabalho muito mais fora do fórum do que dentro. Temos de conhecer a realidade do lugar, das periferias, a situação das escolas. É interessante que se faça esse trabalho externo para entender e ter ideias a fim de que os direitos das pessoas sejam mais bem atendidos.

Você também está envolvido com vários projetos sociais, não? Alguns incluem até a corrida…

O projeto Sua que é Sua, de corrida com crianças e adolescentes, começou em Guarulhos, na Vara da Infância, e foi estendido para a Corregedoria do Estado de São Paulo. É uma iniciativa voltada para o esporte em geral para crianças e adolescentes em situação de risco. A ideia é usar o esporte como instrumento de integração social.

Lidamos com crianças que vêm de famílias desestruturadas, que não atendem às necessidades materiais e psicológicas dessas crianças. São diversos problemas: questões de autoestima, dificuldade de se perceberem. São pessoas que sofrem todo tipo de preconceito; não raro, crianças negras da periferia, das classes mais baixas, algumas delas LGBT, que suportam toda a carga de uma sociedade extremamente racista e preconceituosa como a brasileira.

O Sua Que É Sua se preocupa com tudo isso. Visa primeiramente a inclusão desses adolescentes numa rotina saudável. A gente ensina que praticar atividade física é essencial para a vida — é importante que eles tenham essa percepção. O esporte ensina valores essenciais: a ganhar e perder, a ter resiliência, a respeitar o adversário, a ser ético — uma série de ensinamentos além da saúde. Há evidências científicas de que o esporte ajuda a prevenir e combater o álcool e outras drogas.

E onde entra a corrida?

A corrida de rua entra como um elemento bastante importante: no momento da largada, por exemplo, existe uma rara situação de redução da heterogeneidade social. Naquela hora, temos pessoas das mais diferentes classes, gêneros, ideologias, idades, tudo ali está misturado. E todo mundo imbuído do mesmo espírito.

Um raro momento em que todos largam do mesmo ponto. Isso é muito emblemático numa sociedade tão desigual como a nossa, em que alguns costumam largar muitos quilômetros à frente de outros. E todos começam e terminam no mesmo ponto. Aqueles adolescentes, que normalmente são olhados de soslaio e com desconfiança, que sofrem todo tipo de injustiças, naquele momento estão em pé de igualdade com um CEO, todo mundo de shorts e tênis. Todos na mesma condição e com o mesmo percurso a ser cumprido. E, na corrida, entre os amadores, há aquele clima de “tamo junto”, cada um torcendo pelo recorde pessoal do outro, o congraçamento entre milhares de pessoas.

 E tem ainda a história da medalha, que até demorei para entender. Para mim nunca foi algo importante, mas quando aqueles adolescentes chegavam exibindo as medalhas, felizes, ficou evidente que aquele era um símbolo muito importante no processo de resgate da autoestima. A medalha é um raro e palpável “parabéns” que já receberam na vida.

Há um outro projeto com o rapper Dexter também…

O Trampo Justo é outro projeto do Tribunal de Justiça paulista. O objetivo é conseguir emprego para adolescentes que moram em casas de acolhimento. Quando completam 18 anos, eles saem dessas casas e precisam se virar sozinhos. São jovens provenientes de famílias desestruturadas, não raro estão defasados na escola por conta das dificuldades que passaram. Mas aos 18 anos terão de bancar a própria roupa, moradia, alimentação. E se, com 18 anos, isso já não é fácil para quem tem todas as condições, imagine para esses adolescentes.

A ideia é inseri-los no mercado de trabalho enquanto estão sob os cuidados das varas da infância, para que tenhamos como tutelar esses meninos. Se começam a trabalhar com 16 anos, terão pelo menos dois anos sob nosso amparo para se prepararem, serem estimulados. Isso tudo tem a ver com desenvolver a autonomia deles. 

Queremos chamar a atenção de empresários, desde o pequeno comerciante do interior até grandes grupos — como, por exemplo, o Magazine Luiza (a Luiza Trajano é grande entusiasta, tem dado muita força para o projeto) —, e sensibilizar esses empresários a nos oferecerem vagas de emprego especificamente para esse perfil de adolescente. O Dexter tem o importante papel de convencer o jovem sobre a importância de ingressar no mercado de trabalho.

Quando você diz para um jovem de 15 anos que, com 18, ele tem de estar empregado, esses três anos, para ele, são como se fossem 49, nunca chegarão… Fora a questão da credibilidade. É natural que ele desconfie do meu discurso. Tenho outra origem, não vivi um décimo das dificuldades que ele passou. E ele tem toda a razão, a desigualdade social provoca isso. Mas quando o Dexter, rapper, negro, de periferia, adotado, ex-detento é quem fala que o caminho a ser seguido é o trabalho honesto, facilita. A concorrência do tráfico de drogas é feroz — não exige comprovação de desempenho escolar, não precisa saber outros idiomas e paga muito melhor. Se não cuidarmos desses jovens, o tráfico cuida.

E finalmente…

Há, ainda, desde 2017, o Adote Um Boa Noite. O objetivo é dar visibilidade para crianças e adolescentes que vivem em casas de acolhimento e tentar aumentar a adoção de crianças com mais de 10 anos — um problema sério que temos no Brasil. Existe uma fila de 38 mil famílias querendo adotar crianças no Brasil, mas 95% querem crianças com menos de 10 anos. E a maioria das crianças a serem adotadas tem mais de 10 anos. É basicamente um website, com fotos de crianças que não têm ninguém interessado em sua adoção, com instruções para eventuais interessados. Já conseguimos realizar 31 adoções a partir do projeto e outras 30 estão em andamento.

Você tem ideia de quantas provas participou? Quais as mais marcantes?

Não faço a menor ideia de quantas provas já participei, sou péssimo nisso. Mais de uma centena, acredito. Maratonas, acho que foram 12, preciso contar direito…

Mas algumas provas me marcaram bastante. Vamos começar pela Volta à Ilha (prova de revezamento que circunda a ilha de Florianópolis), em 2011. Uma prova muito legal porque eu corri com amigos. A Volta à Ilha, em Floripa, é um congraçamento. Nove horas de muita diversão. É aquela corrida que, quando você sai da van para correr, fica triste porque quer ficar no carro rindo com seus amigos. Acho que corri mais rápido pra voltar para a van! Repeti em 2018 e foi muito bom novamente! Os recordes, claro, são muito marcantes. 

A melhor prova que fiz na vida, contando todas as distâncias, foi a Meia de Berlim, em 2013. Meu tempo foi 1h17min28s. Nunca cheguei tão perto dos meus 100% de potencial. A maratona de Chicago, em 2010, foi uma prova muito quente, dura de ser completada, e consegui fazer meu melhor tempo até então, 2h47min, e fui o melhor brasileiro na prova — um resultado muito melhor do que eu poderia esperar. Outra corrida que me marcou muito foi a Maratona de Boston de 2012, mas pelo lado negativo. Foi o dia mais quente em abril da história no estado de Massachusetts, um calor infernal e virou uma prova de sobrevivência. Novamente Boston, em 2009, minha primeira vez, fiquei maravilhado com a maratona. 

Minha primeira major, tudo é grandioso, a cidade abraça a corrida. Fiz 2h53min. Lembro com muito prazer.

Qual foi sua melhor maratona?

Berlim, em 2014: 2h44min39s. A condição em Berlim é absolutamente perfeita, totalmente plana. Até que não estava tão frio — prefiro correr com 5 °C,  6 °C —, devia estar uns 15 °C. Mas achei que pudesse ir melhor, uns 2h42min, talvez.

É meu recorde, será para sempre, mas fica aquela sensação de que poderia ter feito um tempo melhor. Foi a prova em que o Dennis Kimetto bateu o recorde mundial. 

A corrida tem dessas coisas: o melhor humano a correr 42 km acaba de atingir sua marca, e 40 e poucos minutos depois passa você, um amador, pelo mesmo lugar, no mesmo dia, na mesma prova.

Como você analisa a corrida de rua no Brasil?

Hoje é um fenômeno totalmente recreativo. Nós temos um maratonista com medalha olímpica, o Vanderlei (Cordeiro), que poderia ter sido ouro — uma coisa curiosa, já falei com o Vanderlei e com o Stefano Baldini, os dois acham que ganhariam a prova… —, mas não tem como saber o que aconteceria em Atenas se não fosse a interferência externa do padre maluco. Fora isso, a gente não consegue formar atletas de 5.000 e 10.000 metros, não conseguimos nem índice olímpico. Tampouco conseguimos colocar três atletas na maratona olímpica.

Do final dos anos 1990 até o início do século 21, fomos fortes. Tivemos Marilson, Vanderlei, um recordista mundial de maratona (Ronaldo da Costa), mas o trabalho não teve continuidade. Qualquer moleque no Quênia hoje corre para 2h03min, e a gente não consegue formar atletas que corram 2h10min. Não é responsabilidade dos corredores, claro, é do sistema como um todo. É preciso encontrar essas pessoas e formá-las como atletas. 

É inconcebível que no Brasil ninguém corra uma maratona em 2h05min. Vemos surgirem atletas com potencial, mas que têm ficado pelo caminho por uma série de dificuldades, como salário e patrocínios. A prova de rua no Brasil hoje é muito mais um negócio, uma questão de posicionamento de mercado de algumas marcas, do que propriamente de um esporte para o qual as pessoas olhem e desejem ser competidores profissionais.

Por que o Brasil é tão pouco representativo no cenário esportivo?

Por causa da falta de incentivo ao esporte em geral. Se considerarmos o Brasil como um país de 212 milhões de pessoas, somos pouco representativos no esporte como um todo. Simplesmente não fazemos frente às potências esportivas, mesmo países com muito menos habitantes, como a Grã-Bretanha, por exemplo.

O esporte brasileiro vive de brilhos individuais. Talvez no vôlei façamos um bom papel, mas no esporte individual as medalhas vêm de lampejos: Robert Scheidt, Rafaela Silva tirou uma medalha de ouro da cartola no judô, porque nem nas artes marciais conseguimos fazer ações minimamente decentes de inclusão e incentivo. E nas corridas de rua é a mesma coisa. Não há trabalho de base. E, mais do que isso, não há a percepção do esporte como um direito, o que é constitucionalmente previsto, não apenas como lazer, mas como prática saudável. E a partir daí, descobrir novos talentos. A base esportiva é péssima, não conseguimos fazer um único campeonato escolar ou universitário de nível. O Brasil desconhece a importância do esporte como ferramenta social.

Se você fosse ministro do Esporte, qual seria seu projeto para o esporte brasileiro?

Ainda que não tenha a mínima pretensão nem competência para isso, não é preciso reinventar a roda. O caminho está traçado pelas grandes potências. Temos a triste mania de copiar o que os Estados Unidos fazem de pior: os péssimos hábitos alimentares, o consumismo exacerbado, a desigualdade, o racismo… E o que eles têm a oferecer de melhor, como a prática do esporte desde a infância, nas escolas e principalmente nas universidades, disso não passamos nem perto. 

Temos de disseminar espaços esportivos nas periferias — e não apenas futebol. Os equipamentos públicos nas periferias são péssimos, no máximo uma quadra ou um campinho, geralmente cuidado pela própria comunidade. É preciso criar a consciência de que existem muitos outros esportes, como a corrida, por exemplo. Um esporte superfácil de se praticar. Ou seja, temos de espalhar o esporte — não apenas o futebol — por todos os lugares e focar a atividade esportiva escolar/universitária. Ainda que nem todos se tornem atletas e medalhistas, que todas as pessoas levem o esporte consigo pela vida toda.

Como você vê a tecnologia dos novos tênis?

Os tênis com placa de carbono vão mudar completamente os parâmetros atuais, para profissionais e amadores. Para os prós, já mudou. Os recordes vêm caindo seguidamente. O recorde da Paula Radcliff (2h15min25s), que ninguém passava nem perto, foi demolido pela queniana Brigid Kosgei, quase um minuto e meio abaixo (2h14min04s) com o novo tênis. E mais do que os recordes, a quantidade de corredores que eram “ilustres desconhecidos” e que estão correndo a maratona abaixo de 2h03min?! Numa maratona grande hoje, o cara que corre para 2h04min não pega nem pódio. 

Não dá para descartar a questão do doping nessa melhora súbita, mas é claro que tem relação também com os calçados com placa de carbono. Essa mudança ainda não atingiu os amadores, até porque são poucos os que têm acesso aos tênis, que são caros e eram poucas as marcas que fabricavam. Mas agora todas elas investirão na tecnologia.

Nessa volta pós-pandemia, a massa de amadores começará a ser mais rápida. Se for verdade a melhora anunciada de 4%, você pega um amador que corre uma maratona em 2h50min com um tênis comum, com o de placa de carbono ele fará, com o mesmo esforço, abaixo de 2h44min…

E sua carreira musical?

Minha carreira musical?!? (risos) Assim como na corrida, sou um pangarezinho… Um completo néscio! Gosto muito de música, mas sou prego total! Comecei a tocar contrabaixo há alguns anos. Gosto muito de jazz, soul e funk, música negra americana dos anos 1960 e 1970. No Tribunal de Justiça, temos a Juss Band, de jazz, e o Samba de Lei, que é roda de samba, que também adoro. Mas quando toco com uma molecada “profissa” é igual ao Iberê corredor brincando de corrida com o Marilson…

 

Por Zé Lúcio Cardim